Estratégia internacional. Política internacionalista

É sabido que nenhuma história começa pelo princípio e a nossa com o espaço da CPLP também não. Da parte galega contamos com a contiguidade geográfica e a continuidade da relação histórica com Portugal e com a realidade de suportar uma política linguística que procura, com uma agressividade mais ou menos explícita, limitar ao máximo os usos sociais da língua da Galiza, ou garantir a supremacia incontestável do castelhano, que vem dar ao mesmo. Do outro lado, o português foi língua de império e a sua implementação (status legal, usos sociais e padronização) foi diversa, nos séculos e nos territórios. Para além disso, o império português, como império marítimo, foi geograficamente descontínuo, pelo que os diversos territórios que têm o português como língua oficial pertencem, cada um, a espaços geopolíticos diferentes, cada um com as suas próprias heranças, interesses e alianças.

Para pensarmos os caminhos da língua é conveniente dar atenção a outras forças em tensão que só se conseguem descortinar com uma análise política feita com perspetiva internacional, como as heranças do período colonial, a construção da desigualdade em função da raça, as ideologias, e, não menos importante, as discussões sobre quais as línguas de ciência e quais os paradigmas de busca da verdade aceitáveis, sobre o que o sociólogo Boaventura de Sousa Santos chama “o fim do império cognitivo”. No espaço da língua portuguesa temos cada vez mais presente a pluralidade e diversificação da línguai, mas também o reforço de opções isolacionistas em Brasil e em Portugal e a descontinuidade das políticas internacionalistas institucionais, do Brasil e do IILP. Devemos ainda considerar a emergência dos padrões linguísticos africanos do português quarenta e cinco anos passados sobre as independências, graças em parte à consolidação dos sistemas de ensino quase ausentes para a generalidade da população africana durante o período colonial. Cumpre lembrar que se prevê um aumento percentual dos falantes africanos de português nas próximas décadas e a diminuição dos falantes das variantes europeia e brasileira, fenómeno que terá um impacto na já secular bipolaridade luso-brasileira. Também, neste contexto internacional, devemos estar atentos à evolução das ideologias e dos movimentos, ao ecolinguismo e a ecologia, sem mais, como via para nos perguntarmos como nos relacionamos com os territórios: com a mediação do conceito de nação? da mãe-terra? com as muitas gradações da metáfora do nascimento aplicado à pertença? E sobretudo precisamos do auxílio de variadas disciplinas, não só a Linguística, para compreender que papel têm as línguas na construção da desigualdade social ou na sua correção.

O livro Políticas linguísticas em portuguêsii é uma ajuda para compreender estes processos, em especial para conhecer as lógicas locais dos países africanos de língua oficial portuguesa, as continuidades históricas, os fenómenos emergentes e os paradigmas ideológicos ou ideias soltas com diferentes graus de cristalização que podem condicionar, orientar ou fazer fracassar as políticas linguísticas dos oito países da CPLP e o território autónomo de Macau sobre os que o livro se debruça. Os organizadores do livro invocam na nota introdutória o marco histórico dos quarenta anos passados em 2015 sobre as independências dos países africanos de língua oficial portuguesa. Ainda que tal objetivo não seja explícito, a escolha tem o mérito de pôr o foco na estreita ligação entre o destino das línguas do espaço da CPLP e as empresas políticas. Além disso, o volume tem o grande acerto da autoria coletiva, o que dá a possibilidade de um relato mais vivo e imediato sobre o panorama linguístico dos variados territórios em que o português é língua oficial, das lógicas locais sobre as que a internacionalização do português incide. De entre a variedade de temas abordados nos diferentes artigos destacamos os que nos parecem mais interessantes para quem trabalha numa estratégia internacional para a língua da Galiza:

– A heterogeneidade da presença e usos do português em cada território. Em São Tomé e Príncipe o português, na sua variedade vernacular, é a L1 dos são-tomenses no período pós-independência, caso único entre as antigas colónias portuguesas em África. Em Cabo Verde não existe uma variedade local do português e o crioulo é a L1 da generalidade da população. Em Angola o português continua a ser a L2 de boa parte da população, mas na atualidade, com o final da guerra civil, o retorno das populações das periferias urbanas para as zonas rurais e a escolarização, dão-se as condições para a aceleração do processo de mudança linguística para o português. Em Angola, como em Moçambique, onde o português também não é a L1 da maioria da população, o estado independente considerou que o português como língua oficial assegurava a “unidade nacional” e era uma arma de combate ao tribalismo e ao regionalismo. Guiné-Bissau, que no período colonial era referida como a “Babel negra”, conta com uma minoria de falantes de português, uma grande quantidade de falantes de kriol e uma grande variedade de línguas faladas maioritariamente pela população rural.

– A precariedade ou ausência de legislação em matéria de política linguística. Em Cabo Verde depois de tantos anos de independência continua a haver falta de políticas diferenciadas para a valorização e o desenvolvimento do português e do crioulo, que garantam, pelo desenvolvimento da consciência linguística que o ensino formal permite, que a população seja verdadeiramente competente nas duas línguas. Na Guiné-Bissau é preciso acabar com a política do laissez-faire, como também tem defendido o atual diretor do IILP, Incanha Intumbuiii. Moçambique continua sem um documento oficial que explane a sua política linguística. As “línguas nacionais” de Angola só em 2011 foram contempladas pelo Estatuto das Línguas Nacionais de Origem Africana (ELNOA).

– A padronização das variedades locais do português, dos crioulos e das “línguas nacionais”. Vários autores apelam à urgência de estudos académicos dos padrões vernaculares do português, dos crioulos e das “línguas nacionais”. É uma questão que tem a ver com a eficácia da escolarização, com a participação dos cidadãos no funcionamento do estado e com a travagem da perda da diversidade linguística. Em relação ao Brasil, Marcos Bagno defende a necessidade de uma política explícita do ensino do “português brasileiro” e não de um inexistente “português internacional”. Segundo a tese de Bagno a pretensa unidade da língua portuguesa é um “objeto ideológico”, útil às classes abastadas do Brasil, herdeiras duma sociedade escravocrata que com receios em relação à maioria da população, “mestiça e pouco letrada”, nas suas palavras.

Também têm espaço no volume outros temas: os paradigmas emergentes em África que defendem que o desenvolvimento do continente passa pelo resgate e o reconhecimento das línguas e saberes tradicionais, alternativas ao paradigma do desenvolvimento e a cooperação; o caso de Timor-Leste como exemplo de quebra do paradigma identitário da língua “em favor de políticas linguísticas que procurem a proteção de interesses locais no ecossistema linguístico global”; o peso estratégico de Macau pelo valor económico que o português tem para a China, em grande medida pelos investimentos em Moçambique e outros territórios de língua oficial portuguesa; a qualificação dos professores nos países africanos e em Timor-Leste; a necessidade de uma política linguística para as universidades; as políticas linguísticas para as diásporas (importante especialmente na política linguística de Portugal e Cabo Verde; que língua estrangeira na escola brasileira e na portuguesa.

Quando falamos de estratégia internacional para a língua da Galiza convém termos em conta as várias dimensões práticas da expressão: a questão do padrão ortográfico e lexical, como queremos situar-nos em relação ao “sistema global das línguas”, se queremos participar (e como) nas políticas linguísticas comuns aos falantes do nosso mesmo tronco linguístico nos organismos vinculados à CPLP, como nos situamos em relação à diversidade linguística no espaço CPLP, etc. Existem grandes intervalos entre uma estratégia internacional para a nossa língua (questão ortográfica e léxica, de comunidade científica, relações sociais, culturais, económicas… o tal “input” para a língua) e uma política internacionalista atenta a processos políticos paralelos, convergentes e divergentes, aos que não está alheio o futuro da língua portuguesa. Que o português tenha um futuro pluricêntrico parece inevitável, mas se esse pluricentrismo vai significar isolamento ou cooperação é uma resposta que a linguística não pode completar.

NOTAS:

i Facto que motiva a muito rica reflexão de Carlos Reis sobre a centralidade na discussão sobre quem produz o conhecimento científico e com que autoridade para a liderança do processo de internacionalização da língua portuguesa. Carlos Reis, “Espaços da Língua Portuguesa ou os perigos da ‘imagináutica’”, in Pelos mares da língua portuguesa 2, Universidade de Aveiro, 2015, pp. 9-20.

ii Políticas linguísticas em português, coordenação de Paulo Feytor Pinto e Sílvia Melo-Pfeifer, Lisboa, Lidel- Edições Técnicas, 2018.

iii No artigo “Guiné-Bissau: um ‘retalho’ de línguas e culturas” (2004), Incanha Intumbo defende a necessidadede guineenses, cabo-verdianos e senegaleses pensarem em conjunto o Kriol (https://www.ces.uc.pt/lab2004/inscricao/pdfs/painel66/IncanhaIntumbo.pdf, acedido em 24/10/2020).

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