Henrique, o Infante

Na secção de História de qualquer grande livraria portuguesa encontra-se um número considerável de livros sobre a época da expansão marítima e não poucos sobre o período colonial pós-conferência de Berlim. São os dous períodos históricos, um quase como sombra do outro, com mais presença no discurso público português. Por outro lado são recorrentes as referências, em publicações e no discurso público, a líderes da nação, paternalistas, autoritários e visionários. O paradigma da propaganda salazarista colocou à frente destes guias da nação o Infante D. Henrique, figura central do Padrão dos Descobrimentos em Lisboa. O Padrão, criado para a exposição do Mundo Português de 1940 e reconstruído em 1960, nos 500 anos da morte do Infante, “sintetiza um passado glorioso e simboliza a grandeza da obra do Infante D. Henrique, o impulsionador das descobertas”, como se pode ler a dia de hoje na página do monumentoi.

Apesar da importância da figura, não contamos com muitas biografias acessíveis para nos achegarmos a ela. A biografia do historiador Peter Russell, Prince Henry “the navegator”. A life, está há tempo esgotada. No mercado contamos apenas com a biografia do historiador João Paulo Oliveira e Costaii, diretor do Centro de História d’Aquém e d’Além Mar (CHAM) da Universidade Nova de Lisboa. Li esta biografia com a expectativa aproximar-me o mais possível à mundividência de personagem tão central em tão central momento da história moderna como foi o começo da expansão marítima do ocidente europeu. Cada facto relatado da vida do Infante está apoiado com variada e sólida documentação. Mas não é menos real na leitura uma certa tendência para a ordenação teleológica dos factos narrados, conducentes à descolagem dos assuntos reinos ibéricos em direção à formação do império português. Subjaz uma ideia de destino nacional do que esta “família real que tutelava os destinos de Portugal” da que o Infante fazia parte como quarto filho do rei D. João I (página 188) seria visionária guia.

O livro fornece outros dados de interesse para reconstruirmos a mundividência do Infante. Chama à atenção à nossa mentalidade a coexistência da influência dos romances arturianos na formação da aristocracia da época, a crença no maravilhoso e na possibilidade constante do milagre como solução, crença que o autor diz ser mais forte no Infante do que nos seus parentes, e a promoção que ele mesmo fez do conhecimento científico mais avançado na época. Este homem com mentalidade de militar medieval, de honra e cavalaria, com tão profunda formação literária, geriu negócios, financiou a universidade com o negócio do açúcar da Madeira e fez da cidade de Lagos, no Algarve, um grande centro dinamizador do conhecimento, em cartografia, construção naval, técnicas e instrumentos de navegação, astronomia e matemática, que permitiu a grande mudança da navegação de cabotagem para a navegação astronómica. Deste modernismo é exemplo o título do livro com que o Infante procurava exercer influência junto do Papa, Horologium fidei, do franciscano mestre frei André do Prado. O livro, sendo de matéria teológica, põe em primeiro plano esse instrumento de medição que é o relógio como símbolo da novidade e a rutura da ideia comum do mundo até então conhecido provocada pelas navegações promovidas pelo Infante.

Outros dados da biografia ajudam a reconstruir o cenário das relações entre os reinos ibéricos no século XV, das relações com a Inglaterra e das relações entre o reino de Portugal e as potências emergentes do Mediterrâneo. No primeiro âmbito comenta o autor o problema social suscitado pela paz a seguir à batalha de Aljubarrota, o uso da intervenção militar como meio de afirmação política e a mentalidade de guerreiro cruzado que orientou o Infante, elementos sem os que não se entende a empresa da tomada de Ceuta em 1415, facto histórico tão marcante para a história do Ocidente europeu. A relação familiar do Infante com a Inglaterra, através da sua mãe, D. Filipa de Lencastre, a única mulher retratada no Padrão dos Descobrimentos, é largamente comentada no livro, assim como as relações políticas de Portugal com a Inglaterra na sequência do assassinato nosso bem conhecido Pedro I. Da presença de atores originários do Mediterrâneo no processo da expansão marítima e do eco internacional das empresas do Infante são sinal a conspiração mediterrânica para que Ceuta não fosse devolvida para a libertação do Infante D. Fernando, o elogio que o humanista Bracciolini faz do Infante, que ele considera superior aos heróis da Antiguidade Alexandre ou César, o relato do navegador veneziano Alvise Cadamosto, que ao serviço do Infante explorou a costa ocidental africana, e, sobretudo, a influência dos cartógrafos da Escola de Maiorca.

Outros dados completam o retrato da personalidade do Infante e a nossa aproximação à sua mundividência. De especial interesse me parecem as referências à castidade de Nuno Álvares Pereira, herói de Aljubarrota, e do próprio Infante. Peter Russell referia-se ao Infante como “o menos sentimental dos homens” (página 193) e o próprio autor desta biografia descreve-o como “redoma imune à carne” (página 367). Outro elemento fundamental para entendermos o Infante como personagem mítico é a sua ligação com o extremo ocidental do Algarve. D. Henrique fez um pedido para fazer um eremitério no cabo São Vicente a seguir à conquista de Ceuta em 1415. Foi para Sagres, nas imediações do cabo, que se retirou numa espécie de desterro depois do desastre de Tânger em 1437, que resultou na prisão e morte do infante D. Fernando, irmão do próprio D. Henrique. O autor refere a crise espiritual do “asceta com remorsos” (páginas 240-1). Por outro lado não deixa de notar a do mundo greco-latino na criação da “vila do Infante”. Quando o Infante usa o termo “a minha vila” está a usar a semântica latina do termo.

Considerando que quem se interessar na Galiza pelas relações com Portugal tem de alargar os seus referentes culturais, sociais e históricos, a leitura desta biografia é útil não só pela informação sobre o período histórico em que viveu o Infante, mas também pelo eco da interpretação comum da sua centralidade na decisão do rumo, ou destino, histórico de Portugal. Por outro lado, considerando que não se entende a independência de Portugal sem a habilidade das suas elites para as relações internacionais e o estabelecimento de uma rede de alianças no Atlântico e no Mediterrâneo que dessem outra dimensão ao reino emergente, o livro permite-nos conhecer um período chave desse processo e os seus protagonistas, D. João I, D. Filipa de Lencastre e os seus seis filhos, que na história de Portugal vêm sendo denominados pelo epíteto que Luís de Camões lhes atribuiu n’Os Lusíadas, a “ínclita geração”. Para além da réplica da imagem mitificada do personagem como visionário e construtor dos alicerces do império português, que por habitual nunca me deixa de causar algum estranhamento, nesta biografia há espaço quer para a imagem que dele tinham os humanistas contemporâneos como paradigma do novo conhecimento do mundo e réplica das grandezas dos heróis da Antiguidade quer para os aspetos mais sombrios da sua personalidade, os seus remorsos em relação à prisão e morte do seu irmão em Tânger e o seu papel no início do tráfico de seres humanos desde a costa ocidental africana.

Notas:

i https://padraodosdescobrimentos.pt/padrao-dos-descobrimentos/

ii João Paulo Oliveira e Costa, Henrique, o Infante, A Esfera dos Livros, 2013

2 Comments

  1. Paulo Arantes Barbosa Janeiro 22, 2021
    • Maria Dovigo Janeiro 25, 2021

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