Quando se proclamou e instaurou o regime da segunda república espanhola, em 14 de abril de 1931, Ricardo Carvalho Calero (Ferrol 1910 – Santiago de Compostela 1990) era um estudante universiário do último curso da Faculdade de Direito na Universidade de Santiago de Compostela.
No prelúdio do regime republicano
Nos anos finais da sua carreira universitária de Direito, que vieram a coincidir com os tempos finais da monarquia de Alfonso XIII, Carvalho foi (como tem exposto bem documentadamente Ernesto Vázquez Souza) figura destacada no movimento estudantil compostelano, especialmente no seio da FUE («Federación Universitaria Escolar»), de cujo grupo compostelano foi algum tempo presidente.
O jovem Carvalho converteu-se então num dos nomes mais prestigiosos do mundo estudantil. A ele foi encomendado um discurso na abertura do ano académico 1930-1931, que seria editado num folheto pela própria Universidade no mesmo ano 1930 (Discurso […] en la apertura del curso de 1930 a 1931), no qual exigia a galeguização da Universidade de Santiago:
“En esta hora jubilosa en que parece que los pueblos que integran el estado español acusan con más relieve que nunca su afán de personalidad y su ansia de vida propia, la clase escolar gallega auténtica cree cumplir un deber ineludible solicitando por mi boca la galleguización de su Universidad. Galicia existe; y por existir tiene deecho a tener una cultura propia; y para ello es preciso que tenga un centro propio de cultura. Aspiramos a crear una vida universitaria auténticamente gallega; aspiramos a obtener un espírito gallego en las aulas de la Universidad. El primer paso hacia esos ideales es lograr que en nuestras cátedras coexista oficialmente con el castellano nuestra lengua vernáncula”.
Nos inícios do ano 1931 recebeu, de parte do movimento estudantil, muito ativo naqueles dias anteriores à instauração do regime republicano, o encargo de preparar um informe sobre um incidente da força pública no edifício da Universidade; este informe, redigido em tom sereno, editar-se-ia pouco depois, antes ainda de chegar a república: La fuerza pública en la Universidad de Santiago: datos y documentos (1931).
No romance Scórpio
O romance Scórpio (1987) de Carvalho Calero é uma narrativa de carácter histórico e em grande medida autobiográfico. No seu desenvolvimento podemos ir seguindo a biografia do seu autor, mas também a história político-cultural galega e espanhola desse tempo.
O capítulo 44 da primeira parte descreve, em boca de “um estudante” anónimo (que representa, neste caso, um alter ego do próprio Carvalho), as horas em que se divulgou em Santiago a notícia da instauração do regime republicano. Estamos na tarde da terça-feira 14 de abril de 1931. Dois dias antes, no domingo 12 de abril, celebraram-se eleições municipais, com vitória das candidaturas republicanas nas principais cidades espanholas.
Um estudante:
Saímos tumultuosamente da casa de Domínguez quando o nosso anfitriom conseguiu comunicaçom co seu primo de Madrid e este lhe dixo que o Ministério da Governaçom fora ocupado polos republicanos e que desde o balcom se proclamara a República.
Nom sabíamos se teríamos que assaltar o paço de Rajói. Cando chegamos à praça do Obradoiro, já havia nela muita gente, e polo Franco, pola avenida de Rajói, por Hortas e Carretas, por San Francisco, pola Azevicharia afluíam novos grupos. Pronto a praça estivo quase cheia de pessoas, e começarom a aparecer entre elas bandeiras republicanas. Dizia-se que os concelhais republicanos eleitos estavam negociando coas autoridades municipais saintes.
De súbito, um grupo de pessoas apareceu no balcom principal e foi içada no hastil umha grande bandeira tricolor em meio das aclamaçons da multitude. O que ia ser o primeiro Alcalde republicano pronunciou um discurso em que deu conta do triunfo geral das candidaturas republicanas em toda Espanha, da proclamaçom da República em Madrid e da ordem e disciplina com que todos os acontecimentos se estavam produzindo.
Logo, um home de volumosa presença e barbas pimargallianas. a quem bem conhecia eu como velho republicano que ele era, tomou a palavra, e declarou que aquel era o dia mais feliz da sua vida, e que já podia morrer tranquilo, porque a democracia e a liberdade reinavam no país, e em breve haviam de ser lembrança esmorecente os vergonhentos anos da Monarquia, cúmplice da Ditadura.
Todos aplaudimos com frenesi, e dando vivas e morras espalhamo-nos polos cafés e as tabernas para celebrar o triunfo.
(Scórpio, 1987, capítulo 1.44).
O “Domínguez” que aí achamos é o nome desfigurado do compostelano Domingos Garcia-Sabell, figura então destacada do movimento estudantil, quem depois da guerra civil, convertido ao galeguismo chegaria a ser uma personalidade importante do grupo de Galáxia e acabaria sendo presidente da Real Academia Galega e também, no campo das responsabilidades políticas, Delegado do governo espanhol na Galiza.
O futuro alcalde de Santiago era Raimundo López Pol.
A Real Academia Galega deixou de ser «Real»
A propósito da Real Academia Galega há aqui um dado curioso. A instauração do regime republicano teve uma consequência imediata: na sua denominação oficial («Real Academia Gallega») deixou então cair a qualificação de Real.
No seu Boletín número 231, correspondente a “1.º Abril de 1931”, último portanto da época monárquica, aparece ainda o título de «Real»: Boletín de la Real Academia Gallega. Mas no número seguinte, 232, correspondente a “1.º Junio de 1931”, primeiro da época republicana, foi já suprimido esse título: Boletín de la Academia Gallega.
Já em época franquista a RAG retomaria o velho qualificativo. No Boletín número 264, correspondente a “Enero 1942” reaparece novamente o título de «Real»: Boletín de la Real Academia Gallega.