Entre os materiais que deixou inéditos Carvalho Calero encontra-se um breve poemário intitulado O trebo das catro follas (1944). Conservou-se como mecanoscrito entre os seus papéis, com a data de 1944. No «Arquivo Carballo Calero» do Parlamento Galego aparece registado assim: “O trebo das catro follas, 1944 / Ricardo Carballo Calero / 12 f. Mecanografados / Arquivo Carballo Calero AC 54 049”.
É um poemário simpático, constituído por 108 quadras de feitio popular, numeradas com números romanos, algumas delas de realização muito feliz. Constitui um bom testemunho da admiração e do carinho que Carvalho sentia pela cultura popular.
Carvalho manteve inédito até o fim da vida este texto, provavelmente por considerá-lo um simples divertimento sem importância literária. No entanto, publicara alguns fragmentos (uma dúzia de quadras) em artigo do jornal corunhês La Voz de Galicia em julho de 1945. E alguns outros fragmentos foram aproveitados por ele nas suas peças teatrais O fillo (1935) e Isabel (1945).
Para compreendermos melhor a atitude que deu origem à composição deste poemário será necessário prestarmos atenção às circunstâncias vitais de Carvalho naquela época dos anos 40. Por esses primeiros anos de franquismo a repressão do uso público do galego alcançou o seu grau mais violento: só a poesia popular e a música tradicional eram campos em que se tolerava um mínimo cultivo literário da língua galega. Essa restrição resultava ainda mais forçada para Carvalho, pois nesse momento (ano 1944 e precedentes) vivia em Ferrol, em situação de liberdade condicional, submetido a um constante controlo policial, que incluía a obriga não só de apresentar-se todos os meses mas também de não afastar-se da cidade ou das suas proximidades sem autorização judicial ou policial por alguma causa justificada e extraordinária.
O poemário completo foi editado postumamente por Carmen Blanco em 1996 (e reimpresso em 2000), precedido de uma iluminadora e detalhada apresentação analítica da editora.
O título do poemário parte da crença popular referente ao trevo de quatro folhas como sinal de boa fortuna e felicidade (embora, a esse respeito, o poeta não deixe de advertir que realmente a felicidade não está ao nosso alcance):
4 “O trebo das catro follas
é a fror da felicidade.
Medra en terras de Ningures
e veno os ollos de Naide”.
Com o trevo das quatro folhas compara os quatro versos que conformam a estrutura mais comum da cantiga popular, a quadra tradicional.
1 “O cantar ten catro azas,
igual que unha volvoreta:
como ila de xesta en silva,
así il vai de bulra en festa”.
No poemário achamos referências explícitas ao contexto vital de Carvalho por esses anos: há alusões a lugares da zona de Ferrol, a ambos os lados da ria (Esteiro, Ferrol, Ferrol Velho, A Granha, Larage, Limodre, Magalofes, Mugardos, Perlio, São Pedro de Leixa, São Mamede de Larage…) e a circunstâncias ou experiências desse tempo.
93 Perlío, nome que soa
cal pérola sobre vidro;
Perlío, nome tan doce
como o celme dos teus figos.
94 Os rapaces de Mugardos
cántanlles aos de Ferrol:
para mariños vosoutros,
para mariñeiros nós.
Apesar de que toda a série de 108 quadras aparece sem nenhuma indicação e sem nenhum título intermédio que indiquem uma distribuição ou uma referência ao conteúdo, é possível distinguir no conjunto pequenas subséries com unidade temática, de maneira que poderíamos ver aí breves poemas independentes.
Assim, poderíamos identificar como poemas autónomos as seguintes unidades temáticas de várias quadras contíguas: «Natal» (quadras 34-37), «Cantiga de berce» (39-41), «Moça que estás na friesta» (42-44), «A peixeira» (57-58), «Amanhecer na aldeia» (77-79), «A lavandeira» (83-84), «Árvores» (86-87); e no fim do poemário três séries de temática geográfica: «A “outra banda” da ria de Ferrol» (88-94), «A zona de Ferrol» (95-101), «Saudades de Compostela» (102-108).
Sirvam de amostra os três fragmentos seguintes.
1) Uma cantiga de berce
Duas quadras oferecem-nos uma breve cantiga de berce (dirigida provavelmente à sua filha Maria Victória, nascida em Ferrol em maio de 1942):
39 “Durme, miña nena, durme,
que eu te velo mentras soñas,
e ate os anxiños do ceo
alporízanse se choras.
40 Durme, miña nena, durme,
choe os olliños de ceo
mentras o teu pai che canta
para escorrentarche o medo”.
2) A peixeira
Outras duas quadras apresentam-nos a figura da peixeira (vendedora de peixe), que ele bem conhecia da sua infância em Ferrol Velho: Descobrimos aí, em só 8 versos, uma sugestiva descrição da peixeira, vista ademais com um sentimento de admiração e de sincera simpatia humana por uma profissão humilde e sacrificada.
57 “– Parrochas como sardiñas!,
olhos-moles, munxes, xardas!”
O sal do mar nos teus beizos
vaiche salpicando a fala.
58 Peixeira de perna espida
que vendel-o peixe fresco,
un tremor de auga salgada
escorrégache antre os peitos”.
3) Saudades de Compostela
As quadras finais do poemário evocam a saudade da cidade de Santiago, tanto em Jaén como na situação de liberdade condicional em Ferrol (pois não pôde ir a Santiago até alguns anos mais tarde):
102 Vendo as torres de Jaén
coidaba na Berenguela.
Baixo o sol de Andalucía
tiña saudades da brétema.
103 A vila de Santiago
está antre Sar e Sarela.
As mozas dos estudantes
antre o esquezo e a espreita.
104 Compostela da lembranza,
cómo xurdes ante min.
Dame os teus brazos de pedra
para que poda dormir.
105 Compostela do recordo,
Compostela, miña nai;
dame cabezal de choiva
para que poida soñar.
106 Compostela do desterro,
vila arelada e prohibida.
A miña alma e a túa pedra
son noivos pra toda a vida.
107 Pol-o abrente antre o maínzo
medra o chío das labercas.
No Toral cantan os zocos
no mencer de Compostela.
108 Coa choiva que arreo cai,
na túa roca de pedra,
Compostela, fía lá
pra o teu mantelo de brétema.