Falaremos aqui da celebração do carnaval na cidade de Roma em 1844. Nesse tempo Roma era a capital do «Estado Pontificio», cuja máxima autoridade era o Papa. (O «Estado Pontificio», que se estendia pelo zona central de Itália, existia desde a Idade Média e perduraria até 1870, em que desapareceria, englobado dentro do Reino de Itália, cuja capital passou então a ser Roma).
O carnaval da Roma papal foi famoso, especialmente desde a época do Renascimento. Dispomos de um curioso testemunho de um galego, Ramom Pedrosa, que, estando de viagem em Roma nesse ano 1844, assistiu à celebração do carnaval romano.
Ramom Pedrosa
Ramom Pedrosa Andrade nasceu na freguesia de Adelám (do concelho de Alfoz, no Valedouro, província de Lugo) em 1786. Depois de estudar Direito desempenhou funções na política municipal em Mondonhedo, onde residia com a sua mulher Dominica Miranda. O rei Fernando VII nomeou-o juiz na cidade de Granada em 1825, e neste cargo permaneceu até 1831. Aí correspondeu-lhe a investigação e enjuizamento de Mariana Pineda, uma rapariga granadina que foi acusada de atividades políticas contra a monarquia, e, de acordo com a terrível legislação do momento, foi condenada à morte e executada publicamente em Granada em 1831. Entretanto Pedrosa foi destinado como juiz a Madrid, para fazer parte do Tribunal que exercia a função de Tribunal Supremo da monarquia (chamado «Sala de Alcaldes de Casa y Corte»), directamente dependente do monarca na sua constituição (seria suprimido em 1834).
Nos fins de 1932, depois de que o rei Fernando VII enfermara gravemente e assumira o governo a rainha Maria Cristina, foram cessados muitos cargos do regime, entre eles Pedrosa. Voltou então para Mondonhedo. Ao iniciar-se o movimento carlista em 1833 integrou-se nele e por essa razão foi detido e internado no castelo de Santo Antão, da Corunha, e logo julgado e condenado ao desterro na zona mais longínqua do reino de Espanha na altura: as Ilhas Filipinas.
De volta do desterro filipino parece que Pedrosa, depois de passar por Londres, se estabeleceu primeiramente em Paris (onde já estava pelo menos em 1843). Desde Paris fez uma viagem a Roma ao longo da primeira metade do ano 1844, mas regressou a Paris, e aqui permaneceu pelo menos até novembro do seguinte ano 1845. Acabaria instalando-se em Roma, onde viria a falecer.
As cartas de Pedrosa à mulher
Conservam-se uma dúzia de cartas enviadas por Pedrosa desde o exílio, em França e em Itália, à sua mulher Dominica Miranda, que ficara residindo no lar familiar do casal em Mondonhedo.
As cartas oferecem muitas informações interessantes e curiosas. A imagem que de Pedrosa nos dão é bastante diferente da mais divulgada por razão do processo a Mariana Pineda: aqui vemos uma pessoa bondadosa e generosa, pronta a prestar ajuda económica a quem a necessitasse, modesta nos seus hábitos de vida, e de sincera e profunda religiosidade.
1844, fevereiro, 21: Roma
Em fevereiro de 1844 Pedrosa encontra-se temporalmente em Roma, procedente de Paris, onde tem neste tempo a sua residência habitual. Nessa data, que era a quarta-feira de Cinças (o início do período litúrgico da Quaresma, imediatamente depois dos dias de carnaval), escreve à mulher, e entre as suas impressões sobre a cidade, detém-se a descrever a celebração do carnaval romano, que acabava de passar.
Roma y febrero 21 de 1844.
Mi muy querida Dominica:
Gracias a Dios que ya salí del gran cuidado en que me tenías creyéndote enferma, pues así me lo hacía temer el no recibir carta tuya; pero felizmente, y como por casualidad, recibí la tuya del 15 de enero […] Yo celebro mucho tu buena salud, que pido al Señor te conserve. […]
El carnaval aquí es cosa extraordinaria cómo se celebra. Tiene principio el sábado de Sexagésima y continúa todos los días hasta el miércoles, que es hoy, menos los domingos y viernes; pero todo se hace con un orden admirable y con todas las prevenciones para que no se altere.
La cosa está reducida a que, al sonido de las campanas del Capitolio, que es después de las doce de la mañana, todos pueden salir por las calles enmascarados y disfrazados; y en la calle que llaman del Corso, que tendrá una milla de largo, toda se llena de carruajes y de enmascarados o sin ellas, y se tiran de coche a coche o de los coches a los balcones porción considerable de confites, almendras y ramos de flores. Todas las casas están bien colgadas y con vistosos adornos. Los carruajes van todos con el mayor orden: van por un lado y vuelven por otro, y parecen locos, tanto se apresuran a tirarse unos a otros. La calle, cubierta de confites que parece de granizo, y también de flores, que todo se anda vendiendo al mismo tiempo. La tropa con sus músicas al frente asegura el orden y contribuye a la diversión.
Y a cosa de las cinco, al sonido de cañonazos, desaparecen como por encanto todos los carruajes, y hay la corrida de caballos y distribución de premios.
Al un extremo de la calle está el Gobernador, que es un cardenal, y al otro el Senador con el directorio.
Y el último día, al anochecer, van dichos personajes, concluída la diversión, al Jesús y asisten a que se reserve Su Majestad.
De noche, muchos teatros, y máscaras en ellos, menos los días dichos.
El carnaval se abre con un acto de humillación que hacen los judíos, que aquí son más de 70.000 y viven en barrio separado. Una diputación de ellos comparece en el Capitolio y a presencia de todos solicita se les permita su permanencia, obligándose a ser sumisos al gobierno, que les concede la gracia […], y p[re]sentan los 6 magníficos pendones con que el Se[na]dor sale en público en seguida a abrir el carnaval, y la salida es ostentosa.
O carnaval romano
Sobre o carnaval romano há abundantes estudos históricos, e testemunhos literários e artísticos.
Vários pintores deixaram-nos imagens daqueles festas. Pela mesma época de Pedrosa o pintor dinamarquês Johann August Kraft (1798-1829), que viveu e faleceu em Roma, elaborava o seu «Carnaval romano» (1828). Dois séculos antes o pintor alemão Johannes Lingelbach (1622-1674), que morou algum tempo em Roma e dedicou vários dos seus quadros a assuntos da cidade, realizou o seu «Carnaval em Roma» (1651). Também Jan Miel van Bike (1599-1663), em quadro que se conserva no «Museo del Prado», de Madrid.
A descrição de Pedrosa tem surpreendentes coincidências com a de Goethe na sua obra Viagem a Italia, de 1788:
“Pouco depois de meiodia, um sino do Capitólio dá o sinal de que todos podem abandonar-se à loucura […]. A um sinal estabelecido, todos têm autorização para fazer disparates e comportar-se tão loucamente como mais lhes agrade, e quase tudo está permitido, menos pelejas ou punhaladas. Por um tempo parece ter-se abolido a diferença entre poderosos e humildes. A gente abeira-se do próximo, e todo o mundo aceita com benevolência quanto lhe acontece: a liberdade e o atrevimento que uns para os outros usam toleram-se pelo bom humor de todos”.
Também se descreve o carnaval romano em O conde de Montecristo, de Alexandro Dumas. Outros escritores prestaram-lhe igualmente atenção, como Montaigne (eco da sua estadia em Roma em 1582) ou Dickens. Na nossa literatura aparece no romance galego O enxoval da noiva, de Víctor Freixanes, neste caso em referência aos inícios do século XVI, com o ensejo da boda da famosa Lucrezia Borgia com o duque de Ferrara.
O compositor Hector Berlioz dedicou ao carnaval romano uma obertura da sua ópera Benvenuto Cellini (1838), obertura que depois o próprio Berlioz adaptou para peça independente, e, como tal, alcançou popularidade.
Com a incorporação de Roma à Itália monárquica em 1870, o carnaval romano perdeu o apoio oficial: as novas autoridades viam com pouca simpatia essa festa porque nela abundavam as críticas e burlas de índole política ao rei e ao governo, e ademais consideravam que se tratava de uma celebração católica e implicava lembranças da época papal; de resto, havia o pretexto de evitar assim os incidentes que por vezes ocorriam, propiciados pelo anonimato das máscaras. A partir do fim da segunda guerra mundial a Câmara Municipal de Roma esforça-se por recuperar o fulgor popular da celebração.
Advertência. Mais informação biográfica sobre Ramom Pedrosa, com a edição completa das suas cartas e de outros documentos, pode achar-se no meu artigo «O juiz Ramón Pedrosa Andrade (Adelán 1786 – Roma? ca. 1850?): notas biográficas e documentos», em: Estudios Mindonienses (Ferrol) 29 (2013), pp. 123-220. Disponível livremente na rede.