Se não é útil o que fazemos, vã é a glória
Lema da Academia das Ciências de Lisboa
Quem não arrisca não petisca
Ditado popular
O que não surge da necessidade quotidiana costuma passar para o último lugar das tarefas a atender. Este princípio pode ser aplicado à ação galega organizada e orientada ao plano internacional, que está supinamente regulada por leis estatais e que na Galiza conta com uma “Lei 10/2021, do 9 de marzo, reguladora da acción exterior e da cooperación para o desenvolvemento de Galicia”, pendente de desenvolvimento (e de aplicação). O documento inclui uma significativa orientação a favor da colaboração com países e territórios de língua oficial portuguesa, e a este respeito espera-se algum resultado concreto, como o projetado Observatório da Lusofonia para a função de órgão assessor do Governo.
Neste espaço a presença galega tem vindo a crescer através dos intercâmbios culturais, destacando a música e a literatura, ou iniciativas como o projeto transfronteiriço “Ponte… nas ondas”, a Rede da GaliLusofonia, os prémios “aRi(t)mar Galiza e Portugal” ou o festival “Maré”. Também podemos citar a presença institucional da sociedade civil nos Congressos Internacionais de Educação Ambiental da CPLP e Galiza, a participação do sindicato galego CIG na Comunidade Sindical dos Países de Língua Portuguesa, ou os três observadores consultivos nesse organismo internacional (CCG, AGLP, DPG).
No terreno das crescentes trocas económicas, que costumam ser incluídas nos relatórios oficiais, sendo notáveis e reconhecidas por todos os analistas, continuam a ficar aquém do ótimo e desejável. Já no plano mais institucional a contagem da participação galega é mais fraca e desigual. Assim, a entrada de Santiago de Compostela na União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa (UCCLA) como observadora, durante a presidência de Martiño Noriega no governo municipal, negociada previamente com o Governo autónomo por mediação da AGLP, parecia uma aposta segura. Infelizmente a iniciativa e o acolhimento dessa organização internacional não recebeu a correspondência adequada da parte galega. O governo do socialista Sánchez Bugallo que se seguiu nos últimos 4 anos correu no mesmo caminho do desinteresse. Imos confiar em que a nova presidenta da Câmara municipal da capital galega, Goretti Sanmartín Rei, seja capaz de corresponder com o papel que cabe a Compostela no concerto internacional, e mais concretamente no contexto das capitais dos países de língua oficial portuguesa.
Caso paralelo, mas diferente, é o da participação galega na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, CPLP. Chegamos a dezembro de 2018 com a candidatura da Galiza à categoria de Observadora Associada bastante avançada, factível do ponto de vista formal e com consenso diplomático no conjunto dos países representados com direito a voto. Apoios que a dia de hoje parecem manter-se. A isto acrescentava-se algo não menos importante: um entendimento entre o Governo galego e os grupos parlamentares que assumiram e cumpriram, cada qual, o seu papel.
É conhecido que a candidatura da Galiza, tendo tudo feito para ser bem-sucedida, tendo sido promovida de forma discreta e leal com o Governo espanhol, não chegou a ser apresentada formalmente à CPLP, sendo substituída em 2019 pola candidatura do Reino da Espanha. É sabido que o Governo central tem as competências constitucionais exclusivas nas relações internacionais. Assim, baseando-se no trabalho previamente feito pola Galiza, e nomeadamente pola sociedade civil, foi admitido em 2021, após a pandemia, na cimeira de Luanda, como Observador Associado. Ao tomar esta decisão o Ministério dos Assuntos Exteriores e Cooperação assumiu toda a responsabilidade e toda a iniciativa, comprometendo-se a dar à Galiza uma presença preferencial.
A ninguém deveria surpreender que a entrada da Espanha tenha gerado algumas expectativas nos meios diplomáticos da CPLP, sem dúvida muito superiores às produzidas nos casos das entradas de Turquia ou Geórgia, por indicar dous casos concretos e longínquos. Basta citar dous fatores para alimentar essa atenção: a proximidade geográfica da Espanha com Portugal, e o ativo papel das entidades galegas previamente admitidas como observadoras consultivas, participando em projetos de difusão do português, muito por cima do que tem realizado qualquer outro país sem representação nesse organismo.
Porém a realidade, até ao momento, não está a satisfazer essas previsões. Aos 2 anos voltados dessa admissão formal continuamos à espera de uma prova de interesse, uma linha de atuação, um “estamos aqui”. O vazio de iniciativas e a falta de cumprimento dos compromissos adquiridos com a Galiza reforça uma leitura política, muito exagerada, publicamente exprimida por algumas deputadas do Parlamento autónomo da Galiza: A Espanha teria entrado na CPLP para evitar a admissão da Galiza, eludindo assim o seu reconhecimento formal num organismo internacional. Uma organização, digamos de passagem, na qual os galegos não precisamos de tradução já que falamos a mesma língua, e para cuja admissão até 3 presidentes autonómicos fizeram gestões ao mais alto nível: Manuel Fraga Iribarne, Emilio Pérez Touriño e Alberto Núñez Feijóo.
Visto mais de perto e com mais conhecimento in situ, as causas desta situação podem ser várias e não excludentes. Existe, alegadamente, uma disfunção na representação e a interlocução diplomática da Espanha em Lisboa, indicando assim que as prioridades e urgências do MAEC estariam orientadas a outras geografias. Observando outros parâmetros intui-se a ausência de um contexto adequadamente preparado pola presidência pro tempore da CPLP, resultando na ausência de oportunidades atraentes para os países associados, talvez derivada dos efeitos perniciosos da pandemia, que levaram à perda de continuidade de uma linha de atuação mantida durante a presidência cabo-verdiana. Reconheça-se que a representação diplomática de Cabo Verde sempre teve a preocupação de convidar os países observadores a participar em diferentes eventos, linha que foi reforçada com a Resolução da XXII Reunião Ordinária do Conselho de Ministros da CPLP, de 20 de julho de 2017, em Brasília, reconhecendo o valor do contributo potencial destes países para a prossecução dos objetivos estatutários da Comunidade.
Contados e analisados os factos tomamos nota de que, na cimeira de Chefes de Estado e de Governo da CPLP de São Tomé, o passado 27 de agosto de 2023, resultou aprovada uma mudança no Regulamento dos Observadores Associados. Esta pretende dar mais responsabilidades e obrigas a este conjunto de países, levando-os a elaborar um Plano de Parceria. O documento agora aprovado reitera o indicado nos Estatutos da organização: a possibilidade de atribuir a categoria de Observadores Associados a “Territórios dotados de órgãos de administração autónoma” (Art. 3.1). No papel tudo é possível. Na prática todos sabemos que se precisa de um alargado entendimento para avançar. Será possível manter o acordo e a discrição nesta matéria conseguido nos últimos anos entre os diversos agentes públicos e privados galegos?
Noutra ordem de cousas, a implementação das mudanças deste Regulamento não se vai produzir por um automatismo administrativo. Precisa-se da implicação e organização da sociedade civil em cada país, verdadeiro motor de avanço. É indispensável o empenho de quem conhecem o terreno e as vias de engajamento, servindo de intermediários com os respetivos governos. Porque sem caderno de encargos concretos e sem rendimento de contas os estados associados também não sentem qualquer compromisso especial, e as possíveis iniciativas decaem.
Deixando constância de o assunto tratado neste artigo vir de longa data, como pode facilmente ser constatado, salientamos que as dificuldades ou entraves do presente não podem ser atribuídas à parte galega, como também não lhe cabe atribuir qualquer deslealdade ou falta de respeito polas regras de jogo estabelecidas pola legalidade do Estado espanhol. Se calhar o admirável neste caso é a paciência com que os galegos continuam a observar, perplexos, a situação e a questão, que precisa de alguma saída razoável.
A fotografia da situação fica incompleta olhando só para os fatores externos, comentados em termos genéricos nos parágrafos anteriores. É preciso aprofundar nos fatores internos, mesmo que seja de forma telegráfica. Aqui residem as maiores incapacidades e, ao mesmo tempo, as maiores perspetivas de crescimento. Uma solução diferente aos problemas conhecidos pode converter-se um acelerante, uma oportunidade. Entre estes citamos o desconhecimento generalizado do mundo lusófono, mesmo entre a classe política, o antilusismo institucional sistémico como axioma do sistema cultural galego, e a ausência de iniciativas que projetem uma imagem da Galiza nos países de língua oficial portuguesa, e contribuam a aliviar o desconhecimento da nossa realidade.
Temos visto demasiadas vezes atribuir toda responsabilidade e a iniciativa ao âmbito da política profissional, ao âmbito do estado, eludindo simultaneamente as próprias encomendas. Nada mais fácil que colocar toda a responsabilidade fora do nosso alcance e culpar os outros das próprias desgraças. Numa certa lógica e discurso facilmente reconhecíveis o mal vem sempre de fora, enquanto todo o bom viria da nossa parte ‘de dentro’. Um ‘fora’ e um ‘dentro’ que também são utilizados como forma de exclusão das ‘dissidências’. Chegados a este ponto cabe perguntar-se o que fazem os ‘próprios’ em relação à Lusofonia.
No nosso entender a garantia de continuidade neste longo processo de inclusão da Galiza no espaço lusófono reside no conjunto de entidades locais, do nível autonómico e especialmente da sociedade civil, que levam décadas a tecer redes culturais, económicas e institucionais, com Portugal e ainda além da Europa. Muito por cima de decisões governamentais, considerações históricas e cálculos vários, é a participação efetiva de galegos nos foros lusófonos que cria o conhecimento mútuo, o diálogo enriquecedor e os contextos propícios.
É esta dinâmica que pode consolidar o ‘direito de admissão’, por assim dizer, e não tanto a alusão retórica à origem comum ou à criação da língua no território a norte do rio Mondego em épocas remotas. Dirigir os esforços a esta estratégia de longo prazo poderá dar melhores resultados que exigir das autoridades umas iniciativas políticas que parecem vir a câmara lenta.
Para concluir poderia dizer-se que a dimensão Galiza – Espanha e a fórmula para a sua relação são vistos e sentidos polas organizações políticas e a população em geral como um parâmetro da realidade evidente em que estamos imersos, constituindo, por assim dizer, o urgente quotidiano. Rege-se por decisões que geralmente só podemos perceber de discursos implícitos.
Por contra a dimensão Galiza – Lusofonia, coerente com a mais lúcida estratégia atlântica da história galega, regista nos últimos anos um crescimento e frequência nos discursos públicos. Porém está quase tudo sem fazer em termos de elaboração de uma ‘posição galega’, que não pode ser improvisada. Para tal é preciso um conhecimento da matéria, documentação, divulgação, seguimento dos temas, participação e continuidade.
Ângelo Cristóvão