Lóstrego e brétema, a eterna dualidade do ser

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Na reunião do acordo ortográfico de 1999 acordou-se incorporar lôstrego e brêtema, termos reconhecidos como galegos, nos dicionários da Língua Portuguesa, como o é o Priberam. Dados neste dicionário, como regionalismos e com o significado de relâmpago e nevoeiro, respetivamente.

Não deixa de ser algo subgerente que estas duas palavras galegas, fossem incorporadas juntas como fazendo parte do mundo da lusofonia.

Foi o académico António Gil Hernández quem nos lembrou este fato no laudatório feito para José Luís Fontenla durante o seu funeral. Sinalizando o reconhecimento destes dous termos como uma das conclusões do encontro de países da lusofonia para o acordo ortográfico, realizado em Lisboa e ao que assistiram ambos, como representantes da Galiza.

Lôstrego e brêtema, são a luz e a escuridão. A dualidade do mundo. Nomeadamente do galego, de incertezas e de duplicidades. De elementos nunca bem definidos, mas sempre de múltiplas possibilidades de ser. Como é o nosso mundo. Um mundo baseado na vida, nos processos biológicos. Na cultura da terra que pode dar abundância ou pode tudo negar por azares que dependem de forças alheias a nós. Um eterno “asegum” um eterno “tem dias” incorporado ao nosso diário viver que nos faz criar uma psicologia preparada para todo o que “possa vir”. Elaborando recursos de sobrevivência para além das contingenciais impostas polo contorno, os avatares e os imprevistos. Ainda estas duas palavras podem ser representativas de pessoalidade confusas, duplas e imprevisíveis: “Dr Jekyll and Mister Hyde”.

Tal como somos a maior parte da gente. Mais umas mais do que outras. Todas temos agachado um Mister Hyde que pode causar dor e danos e ainda um doutor Jekyll amável, colaborador, e que nos ajuda a arranjar todos os problemas.

Lôstrego é um clarão repentino, não qualquer género de luz. Acontece, normalmente acompanhando a uma tormenta, com barulho de tronos e com chuva e tempo escuro. Mas permite caminhar na escuridade ainda que fosse por um tempo limitado: Salvar a situação.

Brêtema oculta o caminho, confunde a visão, desdesenha os contornos. De árvores e raízes, de muros e valados, de regos e regatos. Dificultando o roteiro, pode-nos fazer cair inesperadamente e mancar-nos no nosso caminhar.

Lôstrego brêtema , claridade e confusão, eis a nossa vida: um conjunto desordenado de risos e prantos. De logros e fracassos, de amizades que agasalham nosso rumo e de pessoas atravessadas que nos fazem cambadela para provocar a nossa caída, sem que saibamos bem porque fazem isso.

Amor e ódio, ciúmes e vingança, aparecem no nosso relacionamento com outras pessoas, mesmo nem sabendo bem porque somos objeto da fúria vingadora. Posse e generosidade, tudo cabe no mundo afetivo dos seres humanos. Assim como é na natureza no fim do verão.

Quem mora na Galiza na beira mar sabe que depois duma boa tormenta as águas fertilizam-se e a vida renova-se para darem bom marisco e todo tipo de peixe. Cá, nesta Terra, as águas das rias “purgam” no fim do verão a causa dum fenómeno chamado “emergulhança estival” ou afloramentos de águas frias procedentes dos fundos marinhos. A explosão de vida é tal que proliferam todo género de algas e de micro-organismos. Alguns perigosos para a saúde por conter neuro toxinas, Outros cheios de luz produzem a luminescência chamada “mar de ardora” que alumia nossas costas como esses lôstregos de joia, que foram admitidos como léxico do sistema galaico português. As águas frias procedentes dos fundos, que dificultam o banho, riquíssimas em nutrientes, são responsáveis do bom marisco das nossas costas. Tudo é assim. Luz e brêtema. Claros e escuros.

Rosalia exprimia este sentimento de medo ou de precaução, perante a desgraça que sempre ameaça à felicidade. Como se uma não pudesse viver sem a outra.

Este complexo de Polícrates que impede gozar da felicidade por medo a que esta desapareça, foi expresado por Antom Reixa e Antela Cid, na sua obra de teatro, “Míticas pero Secundárias”. Não sem certa ironia, segundo Reixa “podería ser unha sorte de sabedoría crítica ou preventiva propia dos galegos”.

Complexo de Polícrates ou duplicidade do ser. Com certeza, na vida acontece isto. Por cada luz existe uma escuridade, para cada lôstrego fugaz e intenso, a brêtema instala-se inevitavelmente, para nos dificultar o caminho. Mas, atenção! A brêtema nunca é obscuridade total. Sempre deixa uma mínima claridade que, se bem pode nos fazer tropeçar nalguma raiz que levante do terreno, também nos deixa caminhar se formos espertas em enxergar a meio do nevoeiro.

Quando vivia em Pontevedra era frequente que trás um dia de calor se instalasse a névoa ocultando o sol. A frase mais escutada era: “isto é apenas nevoeiro do mar”. Significando, tanto o alívio da canícula, como a esperança de que logo iria levantar e voltaria luzir o sol.

Deixo ir uma poesia de Rosalia de Castro sobre esse medo a desgraça que paira sempre sobre a nossa felicidade que julgo bem representativa da idiossincrasia galega:

[Referencia https://www.priberam.pt/docs/AcOrtog90.pdf]

 

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