Carvalho Calero : “O problema ortográfico” (1985)

O número dous do órgão da AGAL, a revista Agália, verão 1985, abria com um artigo de Ricardo Carvalho Calero. Nele, no seu estilo rigoroso e elucidativo, sintetizava um esquema do momento e da tradição escrita da língua galega, considerava o sentido e oportunidade de uma virada e formulava as razões, teses e estratégias da proposta reintegracionista na altura:

Os imobilistas, de um jeito ou outro, com matizes mais ou menos acusados, o que pretendem -muitas vezes sem ter plena consciência disso-é que utilizemos a ortografia castelhana. Durante muitos séculos, o galego foi umha língua puramente oral, na qual nom só nom se escreviam, como dizia Castelao, os recibos da contribuiçom, senom nengumha classe de documentos nem textos literários. Entom, cando por algumha razom excepcional primeiro -como reproduzir palavras ou expressons de gentes campesinas para burlar-se da rusticidade da sua fala-, ou com umha finalidade pintoresquista depois, e logo científica ou artística -já em pleno Ressurgimento-, houvo que fixar no papel algum texto galego, esta língua ágrafa, esta língua aliterária foi transcrita, como é natural, empregando o sistema que se empregava na língua escrita, na língua literária do país, que em Galiza era a língua castelhana. Isto era natural, nom no sentido de que fosse natural que o galego vestisse a libré ortográfica do castelhano, mas no sentido de que nom era possível que sucedesse outra cousa.
O galego era tido como um dialecto oral, e nom havia outra ortografia que a da língua oficial. Nom existia umha ortografia galega porque nom existia umha escrita galega. O galego fora umha língua literária noutrora, e mesmo fora a língua literária para toda a Espanha cristá centro-ocidental durante mais de um e mais de dous séculos para um determinado género poético. Mas tal situaçom estava esquecida, e o galego que agora havia que escrever nom era o galego dos trovadores, mas o galego dos lavradores, um galego decaído, que perdera todo o seu léxico nobre, ou seja, o que nom se referia ao trabalho agrícola e marinheiro e ao trabalho artesao mais rotineiro e fossilizado. Porque a língua de todos os poderes -o político, o eclesiástico, o económico-era o castelhano, e com o tempo, cando a revoluçom técnica introduziu inovaçons no próprio trabalho agrícola, estas inovaçons chegárom co seu nome castelhano, porque foram introduzidas desde Castela. Assi, o galego nom só era um dialecto rústico, senom um dialecto em vias de extinçom, porque o seu destino era correr a sorte que já correram as suas manifestaçons nom campesinas, o léxico correspondente às ideias que diziam respeito à vida espiritual, à vida administrativa, à vida cidadá. Com esta realidade, o galego nom podia gerar umha ortografia autêntica.
Avondava, para amortalhá-lo, o sudário da ortografia oficial. Mas como o galego nom morreu, nom acabou de morrer, o problema da ortografia do galego adquiriu novos contextos.

Continua a ser um texto encaminhado ao público geral, está desenhado para resolver como respostas e para rebater as dúvidas e argumentário que continua a levantar-se, neste mesmo presente, daquelas pessoas que contactam, topam ou reparam, por vez primeira, com as teses ou as práticas reintegracionistas.

Teses e práticas precursoras, incómodas ou menos cómodas, as expostas daquela por Carvalho. Formulações e estratégias que, por outra banda, trinta e cinco anos depois, marcam presença e rumo e são incontornáveis e impossíveis de ignorar para sociedade e para a cultura galega.

A reintegraçom da nossa ortografia na nossa área natural nom é umha arela moderna, agromada nos cerebros desequilibrados de um fato de tolos e de umha caterva de ignorantes dominados polo erotismo da utopia. […] Os reintegracionistas propugnam, pois, a assunçom gradual da nossa ortografia histórica, entendendo-se como tal, com certeza, nom só a que se usava cando o castelhano deslocou o galego como língua escrita nas províncias espanholas, senom tamém a que continuou desenvolvendo-se além Minho, onde o romanço atlántico mantivo as suas posiçons como língua normal e realizou umha expansom ultrapeninsular paralela à do espanhol central.

Talvez algumas das escolhas e propostas apontadas em 1985 hoje resultem evidentes, outras até já ultrapassadas, e as mais delas não resultarão novidade pois formam parte do cânone e repertório dialético do reintegracionismo. Mas, o razoamento, sentido e oportunidade continuam sendo orientação e referência.

 

O problema ortográfico

Fonte: Revista Agália nº 2 (1985), pp. 127-134

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