Ainda vivia Franco; em 1969 cheguei a Madrid procedente da aldeia de Penaxubeira, concelho do Íncio (Galiza). Cá estava minha irmã e meu cunhado que tinham a encomenda de buscar-me um trabalho de “botones”, que era do que trabalhavam os menores legalmente no franquismo. E certamente, não lembro bem como, terminei servindo cafés na cafetaria do “Hotel Plaza”, edifício Torre Espanha da Praça de Espanha de Madrid, um dos mais importantes da capital. Lembro que lá iam dormir, e a outras cousas, os pilotos das linhas aéreas internacionais.
Enfim, aquela minha experiência foi tão negativa que felizmente fui expulso e terminei estudando nos Salesianos de Atocha. Neste centro de ensino privado coincidi com outro rapaz de apelido Pacheco, originário da Olivença. Um estremenho que falava “Galego”. Aí começou o meu caminho reintegracionista, eu prefiro denominar regeneracionismo.
Com 23 anos chegou ás minhas mãos o semanário TEMPO de Lisboa, desaparecido faz tempo. Vendia-se num quiosque da Praça da Independência. Sem conhecimento do “galego” promovido pela RAG e muito menos do galego que eu imaginava, surgiu-me a ideia de escrever um “apelo” a Portugal. O 19 de Outubro de 1978 publica uma carta minha o semanário resenhado, ingénua e quase infantil, mas com muito sentimento:
O “GALAICO-PORTUGUÊS”
Sou galego e li pela primeira vez o vosso seminário em Madrid. Quero esclarecer que a língua com que escrevo é o Galego, antigamente denominava-se “Galaico-Português”. Nome com que desejo volte a denominar-se a língua falada em Portugal e na Galiza.
Quero também agradecer publicamente ao professor Rodrigues Lapa o seu interesse pelo desenvolvimento da cultura galega quando estava entre a vida e a morte, devido às perseguições da ditadura do General Franco.
Quero também chamar a atenção do povo português pelo pouco que se interessou pela Galiza, país de onde saiu a sua língua. Todo o português deverá saber que a língua que hoje fala nascéu na Galiza e no Porto de Portugal e que, se hoje existem pequenas diferenças entre português e galego, considero que no fundo são a mesma linguagem; as diferenças que existem entre o português e o galego não são maiores que aquelas que existem entre o inglês da Irlanda e o inglês dos Estado Unidos.
Quero fazer um apelo ao povo português para que se solidarize com o País Galego, através do seu semanário, podendo ser no da edição nacional.
Cinco séculos de luta do povo galego que sofre o colonialismo linguístico espanhol; cinco séculos não chegaram ainda para que o país da saudade, deixe de falar a gloriosa e doce língua galega ou “Galaico-português”.
Peço aos responsáveis de TEMPO publiquem a minha curta carta e aos leitores que desejem informações de Galiza se dirijam para a minha direcção: Xosé Ramon Rodríguez Fernández, Penaxoubeira, Rubiam de Cima (Lugo), Galiza, Espanha.
Xosé Ramon Rodríguez Fernández
LUGO-GALIZA
A minha surpresa foi o grande número de portugueses que se puseram em contato comigo, entre eles um tal Montezuma de Carvalho, Ricardo Coelho Iglesias e muitos outros dos que não lembro os nomes, infelizmente todas aquelas cartas têm desaparecido nas mil e uma mudanças de morada que tenho realizado.
O 23 de Novembro do mesmo ano, o grande amigo da Galiza, M. Rodrigues Lapa, desde Anadia, escreve, no TEMPO, uma interessante carta onde dá resposta ao meu apelo. Naquela altura não tinha ideia da importância do autor desse comentário:
CULTURA E LÍNGUA GALEGA
No nº de 19 de Outubro do seu semanário, li uma carta do sr. José Ramon Rodriguez Fernandez sobre a cultura e a língua galega, na qual vem citado o meu nome com palavras de simpatia e agradecimento. Efectivamente, ando há meio século debruçado sobre o problema galego e acho que esse nosso irmão do além-Minho tem carradas de razão ao censurar-nos do pouco interesse que temos mostrado por tal problema. Sem pôr em causas o risco da fronteira, há um conjunto de motivações que cumpre não esquecer: os laços de irmandade tecidos [pela raça, temperamento, cultura e língua. Somos, por isso mesmo, quer se queira quer não, parte do processo. É tudo quanto se tem feito para obnubilar esta verdade fundamental perde sentido, ao aproximar-se a hora em que o povo galego vai em fim tomar conta do seu destino.
Entre os variados e complexos problemas que se vão pôr à consideração pelos governantes galegos, um dos mais graves, se não o mais grave, é o da língua. A Galiza não possui propriamente uma língua sua de civilização. A que lhe foi imposta, há uns seis séculos, o castelhano, é um sistema estrangeiro. A sua língua natural é o português, que também deverá ser, por isso mesmo, a sua expressão literária, afeiçoada, naturalmente ao seu modo de ser, como sucede com o português de Brasil; a eterna lei da Natureza – unidade na diversidade. Há quem julgue que o galego, escrito há mais de cem anos, como estenografia do dialecto oral, poderia conquistar ainda, por si mesmo, a sua forma literária. Não será possível, por duas razões: 1 – O tempo urge, e não se fabrica uma língua em andar de locomotiva; 2 – além disso, uma língua assim forjada desembocaria em qualquer coisa muito semelhante ao português.
Os próprios galegos tiveram sobre isso uma noção clara porque partiram de um princípio correcto: a identidade fundamental entre o galego e o português, quaisquer que fossem as diversidades secundárias. Um deles Afonso Rodriguez Castelao, concebia uma integração progressista do galego no português até se confundir com ele. Um outro, João Vicente Viqueira, mais positivo e clarividente, resolvia o problema aconselhando o ensino obrigatório do português nas escolas secundárias da Galiza.
Tivemos ocasião de pôr a prova o método de Castelao, experimentado por António Sérgio em textos do próprio Castelao, segundo um critério a que o escritor português pôs o nome de “semi-adaptação”. Resultou disso uma trapalhada grotesca, sem pés, nem cabeça, autêntico produto de laboratório; e o mesmo sucedeu com a versão do português para o galego, através da tradução do poemeto “Zara”, de Antero de Quental, feita por Curros Enriquez. Fica pois provado que não pode haver tradução nem do galego para o português, nem com mais razão de ser, do dialecto para a língua de cultura. A única solução é a preconizada por Viqueira, que tem a seu favor uma circunstância preciosa: o ensino do português nos institutos secundários da Galiza já foi criado pelo Governo espanhol por ordem de 14 de Agosto de 1973. Só falta pô-la em execução, obrigatoriamente.
E porquê obrigatoriamente? Por uma razão bem simples: não faz sentido que amanhã a juventude galega seja forçada a a aprender uma língua estranha, e não seja igualmente obrigada a aprender a sua língua natural, que é o português. Já se pensou na excepcional vantagem que representaria para os galegos terem o pleno domínio de duas línguas de civilização, faladas por mais de 300 milhões de indivíduos? Raro privilégio, que lhes faria esquecer as misérias e injustiças de 6 séculos de apagada História.
É pois chegado o momento, agora que Portugal e Espanha se reconciliaram sob o signo da Democracia e da Liberdade, de reconhecer o caso específico da Galiza e as suas carências em matéria linguística e cultural.
O Governo português deveria ter uma palavra a dizer sobre o assunto. Se não não for possível criar-se o ensino oficial do português na Galiza, ao menos que que se criem, com apoio dos dois Governos, liceus portugueses em cada uma das cidades galegas, irradiando por todos os meios a nossa cultura e a nossa língua, que têm o mesmo rosto e a mesma origem. Trata-se de um reencontro entre irmãos e não de uma conjura contra o Estado espanhol. Que os dois Governos saibam compreender esta verdade primordial – são os nossos votos.
M. Rodrigues Lapa
ANADIA
Em 1980 o amigo Ricardo Coelho Iglesias encaminha para meu endereço de Penaxubeira o “Estudos Galego-Portugueses” de Rodrigues Lapa, com uma dedicatória.
Enfim, assim foi como conheci M. Rodrigues Lapa.
Madrid, 12/11/2020
Belo texto e interessante história, Moncho. Parabéns e abraços!
-celso