Ricardo Carvalho Calero na minha memória

Há 30 anos que Ricardo Carvalho Calero nos deixou, no 25 de março de 1990. Todos estes anos foi proscrito por ver entre os cegos. Ao se romper o silêncio conspirativo e ser homenageado no dia das Letras Galegas de 2020, o que dizer? Pouco presta repetir o consabido. Se possível, no retrato é melhor dar o inaudito. Os de trato esporádico entesouramos vivências breves com mais cobiça que os que tiveram a fortuna de tratá-lo por anos desorbitando o valor da memória, sem evitar o orgulho de ser testemunhas.

Antes de vê-lo, conheci a obra. O primeiro texto que lembro ter lido é o prólogo à obra completa do Cabanilhas, editada no Centro Galego de Buenos Aires em 1959; na barroca facúndia nota-se o amor à língua. No ’77, no início dos cursos de galego, estudávamos a tersa língua de A Gente da Barreira. Depois cruzei com ele cartas sobre assuntos linguísticos.

Primeira vez que o vi foi em Ourense no outono de 1984, no I Congresso Internacional da Língua Galego-Portuguesa na Galiza. Baixo, atilado, olhar agudo, singelo e afável, de natural dignidade. Falava preciso pesando as palavras. Vejo-nos a conversar nos jantares e ceias no comedor do Hotel San Martin, sempre na companhia da sua mulher, antes que as magistrais intervenções no congresso. Tenho comigo um exemplar dedicado do livro Letras Galegas, editado pela AGAL e apresentado então. Queixava-se de com as pressas não lhe terem posto colofão. Na dedicatória teve um lapso: “Ao bom amigo Higino Martinez Estevez, ao conhecê-lo de vista em Ourense, o 19 de agosto de 1984. R. Carvalho”. Era 19 de outubro. Lapso de sábio sumido em pensamentos, mas atento ao do interlocutor. Quisera convocar aqui cada uma dessas conversas, mas a memória é fraca e sinuosa.

Em 1985 faziam-se cem anos da morte de Rosalia. Em Buenos Aires organizou-se o II Simpósio Internacional da Língua Galego-Portuguesa, dedicado a ela no quadro dos cursos de galego no Instituto Argentino de Cultura Galega, aos impulsos do lembrado Abraira, o incómodo “tavão”, tal qual ele mesmo gostava de ser qualificado. A presidente da AGAL (Associaçom Galega da Língua), Dra. Maria do Carmo Henríquez, viajou a Buenos Aires e com ela trouxe o professor. Para a crónica fiel desses dias temos as notas jornalísticas e as suas palestras no simpósio, e depois na SADE (a Sociedade Argentina de Escritores) sobre a importância internacional de Rosalia, todas comoventes.

Desses dias lembro mais os colóquios nas comidas no meu lar e no restaurante Sorrento da rua Corrientes. Vejo a sua viva defesa do amor-paixão como valor irredutível, agudas hipóteses a respeito de poemas rosalianos, pesquisas na vida da poeta e etimologias. Falávamos com o dó dos filhos do séc. XX pela decadência do cinema como fenómeno social. De palavra sóbria, nada enfática, interrogante na busca do matiz. Acusada característica sua era que escutá-lo tinha o mesmo efeito que lê-lo. Injusto me fará a memória, mas apenas lembro tal rasgo em Félix Luna.

Mais fácil vêm outras memórias não convocadas. Por caso, gostou muito do linguado ao queijo azul e da torta de leite preso, naturalizados na cozinha do Rio da Prata. A viajar sem a companheira, bem nos inculcaram por idade e estima acompanhá-lo e protegê-lo zelosamente. Foi um prazer.

A derradeira vez que o vi foi no outono de 1987, no II Congresso da AGAL. Como sinal de partida, a imagem que vejo é a solene, ele a falar no paraninfo da Universidade de Santiago abrindo o Congresso com toda a honra e pompa. O que me ocorre depois som as socráticas caminhadas pelas ruas de Santiago. Éramos vários moços a caminhar com ele: Montero Santalha, Monterroso, Gil Hernândez, Estraviz e algum outro que perdoará o esquecimento. Na Porta Faxeira, pela rua do Vilar, sentados numa cafetaria, ou caminho da casa. Falava-se no presente e o futuro da reintegração. Comunicava paz, não a enervante, ao invés, uma serenidade de olhos abertos para organizar as forças com eficácia e sem despesas inúteis. Acautelava-nos de ter a astúcia necessária e empenhar o esforço preciso no confronto, que a alternativa não era a vitó-ria de outros, senão a morte da Galiza.

O vazio que deixou foi inesperadamente duro. Além do afeto que bem sabia ganhar, a falta sua veo ser muito sentida pela condição de guia numa singradura com poucas estrelas, como elo generacional, pai bom e autor fecundo até o derradeiro dia.

 O tempo acalma dores e estagna feridas, os discípulos a crescer sempre madurecem. Com certeza sabemos também que a sua obra continuará a falar com toda a voz por muito tempo e que, semente poderosa, germinará e frutificará.

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