Carvalho Calero em Buenos Aires

Em 1977 começam os cursos de língua no Centro Galego de Buenos Aires e A gente da Barreira de Ricardo Carvalho Calero é a leitura básica, reintegrada a ortografia do léxico, que na altura era o mais apurado de todo o panorama literário galego.

Anos andados, José Posada, empresário galeguista e depois parlamentar europeu, de passo por Buenos Aires (1) iniciou o diálogo da diáspora local com a AGAL, lá dirigida pela sua mulher, a Dr.a Maria do Carmo Henríquez Salido. Isso resultaria na convocatória por parte da AGAL do I Congresso Internacional da Língua Galego-portuguesa na Galiza, Ourense, no setembro do 1984. Mas antes brotou o I Simpósio Internacional da Língua Galego-portuguesa, em Buenos Aires os dias 12 e 13 de agosto de 1983, na biblioteca do Centro Galego. Da Galiza veio a Dr.a M.a do Carmo Henríquez, que aturou a parte mais esforçada e onerosa da organização. Houve assistentes de Portugal, Catalunha e Argentina. O bom êxito trouxe um vento que levou para o I Congresso Internacional de Ourense, fito decerto mais importante na história galega. Mas o Congresso de 1984, realmente internacional, por sua vez suscitou a vontade de fazer um segundo simpósio platino.

Convocou-se o II Simpósio Internacional da Língua Galego-portuguesa para agosto de 1985, dedicado à memória de Rosalia de Castro. Em 1937, na guerra, não se celebrou o centenário do nascimento e não se quis deixar passar o do passamento sem honrá-la. O simpósio esteve marcado pelos seus presidentes de honra, Dr. Ricardo Carvalho Calero e Dr.a M.a do Carmo Henríquez. Chegaram o 22 de agosto, às 11 hs. Ele vinha recomendado pela família por razões de idade, que na altura não eram tão claras como o tempo revelou. Abriu-se o mesmo dia 22 às 18, na biblioteca do anterior, do Instituto Argentino de Cultura Galega, parte do Centro Galego portenho. O lugar ficou transbordado de assistentes e enchidos os corredores próximos. Dentro estavam as autoridades da casa, o claustro da Universidade de Buenos Aires e os meios, entre eles a agência EFE.

 

O presidente de Amigos do Idioma Galego, Dr. Fiz Fernândez, abriu-o salientando a transcendência do evento, a estatura intelectual e moral do Prof. Carvalho Calero e a flamejante presença da Dra. Henríquez Salido. A seguir Carvalho Calero iniciou os contributos a falar na editoração do poema Silêncio!, de Folhas Novas. É penoso não se ter gravado as palestras; e essa não se lê na bibliografia. Depois o poeta Carlos Penelas expôs nas Visões de Rosalia. Ao cabo a Dr.a Henríquez Salido falou na língua galega nas gramáticas do tempo dos Cantares Galegos.

O 23 o poeta Rodolfo Alonso falou na língua literária, a identidade e a vigência social da cria-ção poética. Eu falei no mistério do poema Adiante! de Folhas Novas e a Dr.a Henríquez Salido tratou da constituição da língua padrão na Galiza. Encerrou a jornada o Prof. Carvalho Calero expondo as suas pesquisas sobre a formação literária de Rosalia.

O último dia, 24, o jornalista e escritor Denis Conles tratou da cronologia da obra rosaliana. O romanista catalão Abili Bassets destacou a presença de Rosalia na Catalunha do seu tempo e do posterior. A seguir a Dr.a Henríquez Salido analisou os versos de A Gaita Galega dos Cantares Galegos na perspetiva sócio-linguística e da gramática generativa. Depois Julieta Gomez Paz leu seu “Rosalia em Pimentel”. Encerrou Carvalho Calero com “A importância histórica da obra de Rosalia”. O fundo e forma da palestra final atingiu um calor difícil de transmitir.

Simpósio era “ato de beber juntos”. Para merecer o nome acabou nos brindes de uma ceia de centos de pessoas no restaurante El Orensano, diante do Centro Galego, que já não existe. O simpósio não foi a sua única atividade em Buenos Aires. O 27 de agosto o professor falou na Sociedade Argentina de Escritores sobre o eco crescente de Rosalia no âmbito internacional.

Roto o silêncio conspirativo com as honras em 2020 no dia das Letras Galegas, quero contribuir às do que por décadas foi proscrito por ser um vidente entre cegos. Mas, que se pode dizer que os bons e generosos já não saibam? Pouco presta repetir o consabido. Desses dias tenho outras pegadas na memória. Certo é que os que tivemos trato esporádico pendemos a avaliar as breves vivências com mais cobiça do que os que tiveram a fortuna de tratá-lo por anos. Exagero o valor das memórias, mas é inevitável orgulhar-se de ser testemunha.

Antes de vê-lo, li-o. O primeiro que lembro é o prólogo às obra completa de Cabanilhas, editadas no Centro Galego de Buenos Aires em 1959. Na facúndia barroca notava-se o amor à língua. Como disse, no ’77, nos cursos de galego estudávamos a limpa língua de A Gente da Barreira. Depois cruzei com ele cartas sobre assuntos linguísticos, que tenho de rebuscar.

A primeira vez que o vi foi no outono de 1984, no I Congresso Internacional da Língua Galego-portuguesa na Galiza. Baixo, atilado, olhar agudo, singelo e afável, dignidade natural. Falar preciso pesando as palavras. Lembro conversas nos jantares e ceias no comedor do Hotel San Martin, sempre na companhia da sua mulher, e as magistrais intervenções no congresso. Tenho comigo um exemplar dedicado do livro Letras Galegas, editado pola AGAL e então apresentado. Queixava-se de nas pressas não lhe terem posto colofão. Na dedicatória há um lapso: “Ao bom amigo Higino Martinez Estevez, ao conhecê-lo de vista em Ourense, o 19 de agosto de 1984. R. Carvalho”. Era 19 de outubro; lapsos de sábio sumido no pensamento, mas atento a do interlocu-tor. Quisera evocar cada uma dessas conversas, mas a memória é fraca.

Dos dias do simpósio de 1985 lembro as conversas nas comidas no meu lar e no restaurante Sorrento da rua Corrientes. E visitas a diplomatas para falar no caso galego, então pouco visível. Vejo sua viva defesa do amor como valor irredutível, hipóteses a respeito de poemas rosalianos, pesquisas na vida da poeta e etimologias. Falávamos com o dó dos filhos do séc. XX pola decadência do cinema como fenómeno social. A palavra sóbria, nada enfática, interrogante na busca do matiz. Acusada característica sua era que escutá-lo tinha o mesmo efeito que lê-lo. Mais fácil surgem outras memórias não convocadas. Por caso, gostou muito do linguado ao queijo azul e da tarta de leite preso, tam naturalizados na cozinha do Rio da Prata. A viajar sem a inseparável companheira, inculcaram-nos acompanhá-lo e protegê-lo zelosamente, e isso foi um prazer.

A derradeira vez que o vi foi no outono de 1987, no II Congresso da AGAL. Como sinal de partida, a imagem a vir-me é a solene de ele a falar no paraninfo da Universidade de Santiago abrindo o Congresso com a pompa e circunstância merecidas. Ocorrem-me depois as socráticas caminhadas polas ruas de Santiago. Éramos vários os moços a caminhar com ele: Montero Santalha, Monterroso, Gil Hernândez, Estraviz e outros que perdoarão o esquecimento. Na Porta Faxeira, pola rua do Vilar, sentados numa cafetaria, ou caminho da sua casa. Falava-se do presente e do futuro da reintegração. Comunicava paz, não a enervante, ao invés, uma serenidade de olhos abertos para organizar as forças com eficácia sem despesas inúteis. Acautelava-nos de ter a astúcia necessária e empenhar o esforço preciso no confronto, que a alternativa não era a vitória de outros, senão a morte da Galiza.

O vazio que deixou foi inesperadamente duro. Além do afeto que sabia ganhar, a ausência veio ser muito sentida pela condição de guia numa navegação sem bússola com poucas estrelas, como elo generacional, pai bom e autor fecundo até o derradeiro dia. Mas sabe-se que o tempo acalma dores e estagna feridas, e os discípulos a crescer sempre madurecem. Com certeza sabemos também que a sua obra continuará a falar com toda a voz por muito tempo e que como semente viçosa germinará e frutificará.

 

NOTAS:

 

1 Talvez movido pelo declaração dos Amigos do Idioma Galego de outubro de 1982 em Buenos Aires: A ÚNICA LÍNGUA PRÓPRIA DOS GALEGOS É O IDIOMA GALEGO. Redigido no reintegrado de então, transcreve-se em anexo.

 

 

 

ANEXO

Declaraçom dos Amigos do Idioma Galero Buenos Aires, outubro de 1982

A ÚNICA LÍNGUA PRÓPRIA DOS GALEGOS É O IDIOMA GALEGO

Os que subscrevemos esta declaraçom, galegos de Buenos Aires AMIGOS DA LÍNGUA GALEGA, à que amamos porque amamos a nossa identidade e da que reivindicamos o direito de sermos defensores;

CONSCIENTES de estarmos vivendo num-a encruzilhada histórica decisiva para a sobrevivência da língua que herdamos dos nossos devanceiros, e, já que logo, para a sobrevivência do mesmo povo galego como sujeito da história com identidade de seu;

SABEDORES de que somente se salva e sobrevive quem aceita em pleno a própria identidade, única realidade profunda; de que esta se define num-a cultura específica no espaço e no tempo; de que a cultura própria se cifra na língua concreta que a encarna como visom do mundo e como atividade sobre o mundo; ESPERANÇADOS coas imponderáveis possibilidades que oferecem as novas normas [pré]autonómicas, que, mal que reticentes e tímidas, contodo inéditas no atingente a ensino e proposta de uso normal da língua materna; ALARMADOS polas ominosas notícias, que quase nom podemos crer, de intentos de empregar os poderes autonómicos e o peso das instituiçons contra a língua e o povo galegos represando a maré crescente da normalizaçom, que a mocidade precipita e impom, e legiferando um programa bilingüista que é um preservar a paz do raposo no galinheiro;

CARREGADOS co peso de certa tradiçom de exemplaridade que exercera outrora e por anos a comunidade galega de Buenos Aires perante o povo da Terra;

APERCEBIDOS de manobras para aproveitar dessa exemplaridade por parte dalgum elemento desligado desta comunidade que, fingindo representar os emigrados, tem feito apresentaçons formais na Terra aconselhando o rejeito da língua própria, dum jeito tam abraiante que só é possível explicá-lo polo propósito de ver se se pode ferir e abater o espírito exultante das novas geraçons galegas; e

DISPOSTOS a pôr os meios que forem necessários e eficazes para assegurar a continuidade da nascente normalizaçom da língua galega, que hoje se vê comprometida polos esforços concertados de quem nom querem que nós sejamos nós, é que fazemos um afervoado convite a compatriotas e amigos, onde quer que residam, e às instituiçoes da Terra e de fora, para que do profundo do coraçom e sem reservas declarem connosco que:

  1. A ÚNICA LÍNGUA PRÓPRIA DOS GALEGOS É O IDIOMA GALEGO. O galego vivera normal e exclusivo no território da Galiza atual até o século XV, e vive ainda hoje nessas condiçons no que foi a Galiza do Sul, a que co tempo e a expansom territorial chegaria a ser Portugal. O galego falado hoje dentro dos lindes do estado espanhol apenas sobrevive, do ponto de vista orgânico, desde que no século XV começou a ser sistematicamente proscrito dos âmbitos da cultura superior e progressivamente tolhido pola língua oficial. Apesar de todas as travas ensaiadas e exercidas, o galego continua a ser o meio habitual de comunicaçom do 80% dos habitantes de Galiza. A persistência vegetal do galego e a simultânea indefensom ativa ante a presença do castelhano criarom no seio do galego um-a série de falares que nom deixam identificá-los coa língua galega a normalizar, e da que somente som achegamentos parciais, apoios na realidade dos que partir.
  2. PARA TIRAR O POVO GALEGO DO SEU MARASMO SECULAR É PRECISO NORMALIZAR A LÍNGUA EM CHEIO, despenalizando o seu uso, espalhando-a cum ensino ativamente estimulado, levando-a a todo âmbito e nível, apurando-a das escórias à força nela inseridas e fornecendo-a das estruturas cristalizantes que lhe permitam realimentar-se em qualquer disciplina. Todo intento de frear a restauraçom lingüística a partir da estatística, ou de posiçons pseudocientíficas que rejeitam toda noçom de valor no social, todo intento de estagnar o galego no marasmo das suas lazeiras, toda violência para consagrar o “status quo”, somente serve à causa da perda do galego.
  3. PARA NORMALIZAR A LÍNGUA CUMPRE ESPERTAR NELA A MEMÓRIA DO QUE FOI QUANDO SÃ, o que automaticamente assinalará todo canto de espúrio atura hoje. Por fortuna, a Universidade, cum-a maciça inscriçom em Filologia Românica, fai esse labor de retorno às fontes. Contudo, nom avonda a volta às fontes e a apuraçom dos tecidos tumorosos, o qual tam somente constitui a primeira fase do caminho a percorrer. Ficar nisso importaria um-a simples regressom, um arcaísmo romântico peró infrutuoso. Tem-se de fazer o caminho de saída para o futuro, o caminho que algum-a vez nom se percorreu, e para isso, apesar das resistências inconscientes que todos levamos e que nos foram instiladas durante cinco séculos.
  4. TEMOS DE LHE PROPOR AO GALEGO O MODELO DAS GALHAS SÃS DA ÁRVORE À QUE PERTENCE para assim resolver cada incerteza entre variantes, tantas vezes multiplicadas no curso de séculos sem cânon escrito, e para encher as lacunas de vocabulário técnico. Neste campo nom há alternativa fora do castelhano e do português, e a escolha terá de ser medida nas suas conseqüencias. Optar o castelhano como língua subsidiária, além do que apresenta de incoerente por ser língua diferente, importa assegurar o processo de deglutiçom e dialetalizaçom do galego por parte da língua do estado. Optar o português para subsidiar vazios é recorrer a um codialeto da mesmqa língua peró gera resistências internas fortíssimas, resistências que som o produto final da longamente induzida divisom da alma galega. Há nos galegos um-a sorte de esquizofrenia: duas almas coexistem em nós, já ocultamente, já em conflito mais ou menos manifesto. Às vezes um-a delas é inconsciente e finda por possuir o sujeito; outras, debatem-se em pugna surda de conseqüências trágicas. A indecisom galega e as incoerências galegas provenhem deste duro conflito.
  5. A NORMALIZAÇOM TEM DE SER FEITA POLOS GALEGOS E DESDE O MESMO GALEGO, num processo gradual peró constante, sem resignar nenhum dos elementos legitimamente peculiares do galego, isto é, retendo todo aquilo que nom foi inserido pola transculturaçom castelhanizante ou produzido pola paralisia orgânica que lhe sobreveo a conseqüência dela. Cumpre sublinhar que o objeto e os agentes da normalizaçom tenhem de ser galegos, e cumpre sublinhá-lo porque somente na clareza de objetivos se podem atingir logros. Ainda que pareça estranho, há quem, com certa simplicidade, supom que a meta a alcançar é um idioma uni-forme, cujo padrom seria talvez Coimbra, Lisboa ou Rio, desconhecendo que mesmo dentro desse português normal coexistem, como em todo idioma moderno espalhado polo mundo, numerosas variantes locais e dialetos fortemente perfilados, estilos e formas culturais particulares, que nom impedem a comunicaçom básica escrita. É que nom é a reintegraçom um-a substituiçom dum-a língua por outra, nem mesmo dum falar por outro; é a viagem do galego polas suas às suas próprias fontes históricas e o retorno desde esse passado para um futuro de língua desenvolvida. Nesta segunda parte da viagem terá sem dúvida a companhia dos falares portugueses – os seus codialetos na mesma grande língua galego-portuguesa –, peró o protagonista será ele mesmo, paulatinamente apurado e enobrecido e, assemade, idêntico no tempo.
  6. A NORMALIZAÇOM DEVE FUNDAR-SE NO CONSENSO COLETIVO. Todo intento clandestino dos poderes governativos ou institucionais de ditar normas arbitrárias de costgas à vontade popular ou que nom se acordem co imparável renascimento galego, somente servirá para atrasar a soluçom. No entanto, receberá a resposta condigna do povo galego. A estigmatizaçom dos seus autores.
  7. O CONSENSO SOMENTE PODERÁ SER LOGRADO SOBRE BASES CIENTÍFICAS e coa participaçom ativa de todos aqueles que tenhem competência para a tarefa. Galiza conta hoje cos lingüistas de que antes carecia. A Universidade veo a mudar criticamente o estado das cousas neste campo. Cumpre estimular este processo e nom enervá-lo, como fâm os que tencionam legislar de costas à realidade opondo-se à convocatória dum Congresso da Língua Galega.

Se som dados estes passos, a longa travessia do povo galego através da noite estará a concluir. E nom é que nom saibamos que afinal triunfaremos, peró é que quijéramos que fosse aginha e que fossem as atuais geraçons as que gozassem da alvorada que tem de chegar. Para isso, sem egoísmos vãos e com puro amor à pátria, comprometemo-nos e convidamos a comprometer-se à tarefa de fazer do galego a língua mais criativa do século XX e do vindoiro.

Conselho orientador: Dr. Fiz A. Fernândez, Prof. Julieta Gómez Paz, Dr. Perfeito López Romero, Higino Martínez Estévez, L.do José Martínez Romero, Dr. António Pérez Prado, Dr. German Quintela Nóvoa. 

Junta organizadora: Presidente Angélica Fontenla, secretário Luìs Martínez, Alice M. de Carrau, Maria Antónia Luna, Esther Vásquez de Ruiz, Manuel Ucha, José B. Abraira.

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