A brêtema, esse nevoeiro que vem do mar, nem sempre nos oculta o que está para além, porque além de nós há outros sentires que a névoa molda, amolda, adequa e acomoda em silenciosas saudades.
Encontrar padrões é a essência da matemática, assim como a da música. Os matemáticos e os músicos dedicam-se a procurar modelos, mas a matemática, tal como a música, não é perfeita e, por isso, uma e outra são ciência e não crença. Em 1931 ─quatro anos após ser divulgado o Princípio de Incerteza por Heisenberg─ Kurt Gödel provou, com os Teoremas da Incompletude[1], as limitações intrínsecas dos sistemas axiomáticos, exceto os mais banais, e mostrou as fissuras da lógica matemática, acabando, assim, com a proposta de David Hilbert para demonstrar que a aritmética era consistente e sem contradições internas, ou seja, que qualquer axioma ou declaração verdadeira sobre as matemáticas sempre teria uma prova, ainda que fosse muito difícil de encontrar, como aconteceu com o último teorema de Fermat, que precisou de 350 anos para ser provado.
Gödel permitiu que as matemáticas falassem de si mesmas, como um sistema autorreferencial, e orientou a sua tese de doutoramento a demonstrar que há declarações verdadeiras que nenhum sistema matemático pode demonstrar. Provou aquilo que na música, os compositores eruditos, fazem, desde há séculos, com uma série de regras que permitem deduzir utilizações lógicas e consistentes, conformando os axiomas das obras mas sendo conscientes de que nem todas as proposições de uma obra de arte podem ser demonstradas. Entre a verdade e a sua prova há uma fenda. A genialidade do compositor está, precisamente, em criar obras consistentes, sem contradições, mas razoavelmente imprevisíveis, e isso só se consegue com axiomas que não podem ser provados. Um famoso exemplo é o acorde do Tristão e Isolda de Wagner. É um axioma que gera grandes controvérsias analíticas. É consistente e coerente no discurso mas ninguém o consegue provar de modo irrefutável dentro do sistema axiomático da música.
Os musicólogos, sendo de letras, têm tendência a usar linguagens hermenêuticas para falar das verdades que não se podem provar, numa espécie de mística sobrenatural, mas a música, por ser a expressão mais formosa da ciência matemática, também é abstrata e autorreferencial, e só no seu próprio sistema é que se pode descrever com precisão.
No século XIX, quando nasceu a musicologia europeia, proliferaram os intentos de demonstrar que todas as músicas contavam uma história literária, e se a partitura não tivesse texto ou programa explicativo, inventavam um para que aquela burguesia triunfante acreditasse que também possuía os segredos da arte sonora. Era uma interpretação que menorizava o próprio sistema musical e que teve alguns detratores notáveis como o crítico austríaco Eduard Hanslick, que enfrentou com coragem “aquela apodrecida estética do sentimento” em favor do conteúdo musical[2].
Mas a incompletude não atinge só as ciências matemáticas, e portanto a música erudita, mas também as outras artes e mesmo a literatura, onde os axiomas que não podem ser provados estimulam o imaginário coletivo e nos elevam por cima da prosaica realidade.
Na cultura que se estende pelo território do antigo reino suevo, a incompletude da vida manifesta-se na integração natural da presença da morte num contínuo vital, em harmonia de existências paralelas a socorrer-se mutuamente. “A brêtema veio do cemitério”, “o nevoeiro era o alento da morte”, “a festa no adro é dos vivos e dos mortos”[3] escreve Iolanda Aldrei em Entrecontar, onde evoca esse mundo de cá e de lá sem qualquer contradição nem recurso a folclorismos, provando que a essência de uma cultura não reside na expressão dos seus populares mas na capacidade de recriar o seu imaginário.
Outro exemplo, radicalmente diferente, é seique de Susana Sanches Arins, que trata a repressão da ditadura franquista, com o seu interminável regueiro de corpos sem vida, e com os próprios assassinos a apagar as provas. Refere que “os fundos da falange estão higienizados, depurados, tosquiados, purgados, mundos e limpos. quem não quis figurar neles teve tempo de apagar as pegadas, o nome, as fotografias, o endereço e o trabalho. o tio manuel deveu de ser desses”[4]. A escrita, consistente, utiliza só letras minúsculas, talvez porque uma história de barbárie tão cruel só pode ser contada desde a perspectiva minorada das vítimas, e essa transgressão das regras ortográficas gera um novo axioma que não pode ser provado no seu próprio sistema, mas potencia o imaginário antifascista.
Theodor W. Adorno diz que “as obras de arte que se apresentam sem resíduo à reflexão e ao pensamento não são obras de arte”[5] portanto não basta com encontrar padrões, há que preenchê-los de axiomas enigmáticos pois “toda a obra autêntica propõe a solução do seu enigma insolúvel”[6] onde se acomodam as silenciosas saudades.
© 2021 by Rudesindo Soutelo
(Vila Praia de Âncora: 24-05-2021)
NOTAS
Ilustração: Capas dos livros Entrecontar e Seique
[1] Gödel, K. (1986). Collected Works, Volume I, Publications 1929-1936. New York: Oxford University Press, pp. 144-195
[2] Hanslick, E. (2002). Do Belo Musical. Lisboa: Edições 70, p. 11.
[3] Aldrei, I. (2020). Entrecontar. Santiago (Galiza): Através Editora, pp.14, 28.
[4] Sanches-Arins, S. (2019). seique. Santiago (Galiza): Através Editora, p. 157.
[5] Adorno, T.W. (2008). Teoria estética. Lisboa: Edições 70, p. 188.
[6] Ibid. p. 197.