O Bardo na Brêtema : O pH do conhecimento PhD

“A cultura é uma observância. Ou pelo menos pressupõe uma observância”[1], escrevia em 1949 Ludwig Wittgenstein nos seus apontamentos manuscritos. No mesmo ano, Albert Einstein afirmava que o conhecimento existe em duas formas: inerte, guardado nos livros, ou vivo, na consciência das pessoas; e considerava que a segunda forma era a essencial[2]. Mas Aristóteles já nos esclarecera que o conhecimento pela demonstração constituía o saber[3].

A natureza é física, no entanto os humanos têm a capacidade de a transformar em cultura, recriando e transcendendo os seus significados, mesmo que não alterem as propriedades. Esse cultivo da natureza acrescenta um sentido novo à ordem física e estabelece a ponte entre o mundo e o espírito. A cultura não existe na natureza; ela só se manifesta pela ação humana e assim como não há cultura sem pessoas, também não há pessoas sem cultura. A cultura é o património acumulado que cada geração recebe do seu contexto social e do qual precisa para proceder em comunidade; além disso, não é homogénea e no mesmo grupo humano gera-se um pluralismo cultural onde há manifestações que podem ser melhores do que outras. Uma vez assimiladas, as formas culturais são como uma continuação da natureza, numa simbiose que se torna difícil distinguir entre o físico e o simbólico; contudo, nenhuma cultura deriva da essência da humanidade, ainda que se travem guerras pelo predomínio de umas sobre as outras. A cultura aprende-se e transmite-se, mas instala-se na mente, não nos genes.

O conhecimento, afirma Edgar Morin, é a organização da informação que extraímos do universo. O importante não são os dados mas o cálculo que realizamos com as unidades de informação que retiramos ao ruído. A vida é uma organização computacional, uma dimensão cognitiva indiferenciada, pois esse conhecimento não se conhece a si próprio. O cérebro não computa diretamente os estímulos; computa apenas as computações que os seus neurónios fazem. Analogamente, conhecer é produzir uma tradução das realidades do mundo exterior[4].

O saber é um conhecimento reflexivo de índole interdisciplinar e âmbito mais vasto. Historicamente, a filosofia foi sinónimo do saber racional e da ciência, um sistema que abrangia a totalidade do conhecimento, daí que em muitas Universidades o grau académico mais elevado se denomine Philosophiae Doctor ou PhD. Isto faz lembrar a famosa máxima de José de Letamendi, que figura no pedestal da estátua de Abel Salazar, fundador do Instituto Biológico do Porto: “O médico que só sabe de medicina, nem de medicina sabe”.

Seria bom dispor de uma escala similar à do pH, que poderíamos denominar como ‘potencial Habilitador’, para medir a intensidade da grandeza interdisciplinar dos PhD, e assim podermos evitar tanto os doutores que só sabem da sua área científica ignorando o resto (conhecimento ácido), como os que sabem de tudo desconhecendo o próprio (conhecimento alcalino). Só aqueles que se encontram no centro da tabela (pH equilibrado ou neutro), cumpririam os requisitos de sabedoria de um PhD. Além do mais, também os candidatos a doutorandos deveriam demonstrar esse equilíbrio no conhecimento interdisciplinar e, desse modo, eu talvez não tivesse que passar pela vergonha alheia quando recebo propostas, sempre com a desculpa de estarem muito ocupados, para escrever-lhes a tese. Fique aqui a dica para que as instituições universitárias tratem da sua honra.

As unidades de conhecimento necessárias para alcançar a sabedoria não abundam e é assustadora a quantidade de PhD incapazes de relacionar a sua especialidade com o desenvolvimento sustentável do mundo em que habitam. Fico espantado quando alguém que atingiu o nível mais alto na formação universitária declara, sem qualquer pudor, que não lê nada para além da sua área, ou, falando de música, desagua no relativismo opinável e equipara o pimba com Mozart.

Os músicos eruditos não são diferentes e muito poucos conseguem relacionar as obras que tocam com o mundo em que vivem, porque se ‘só sabem de música, nem disso sabem’, e daí que, olhando para o repertório que preenche a programação da imensa maioria das salas de concerto, pareçam animadores dum museu arqueológico. Só um pequeno grupo revela o seu vasto saber divulgando a música que nos é contemporânea.

Informação, organização e reflexão. “A educação pela música é capital, porque o ritmo e a harmonia penetram mais fundo na alma e afetam-na mais fortemente, trazendo consigo a perfeição”[5], razoava Platão. Razão técnica, razão prática e razão teórica, “e com razão, honraria as coisas belas, e com elas se alimentaria e tornar-se-ia um cidadão perfeito”[6]. A cultura, o conhecimento e o saber.

Vila Praia de Âncora: 20-07-2021

 

NOTAS:

[1] Wittgenstein, L. (1996). Cultura e valor. Lisboa: Edições 70, p. 121.

[2] Einstein, A. (1954). Ideas and Opinions. New York: Crown, p. 80.

[3] Aristóteles. Analíticos segundos, livro I, §2, 71b 16-18. Em Órganon II.

[4] Morin, E. (2008). Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget, pp. 159-161.

[5] Platão. A República. Livro III, 401d.

[6] Ibid., 401e.

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