Conta-nos Camilo Nogueira, um dos melhores políticos que pariu a Galiza nos últimos tempos, no seu livro Uma nação no mundo. A razão resistente (1), que começada a Idade Moderna, os reis da Monarquia Católica ou Monarquia Hispânica (2), exerceram o seu poder e aplicaram os seus esforços em reprimir as transformações políticas, filosóficas, científicas, económicas e religiosas dentro dos seus domínios, enquanto nas outras monarquias europeias esses mesmos campos foram explorados e cultivados por grandes pensadores que fizeram do continente europeu o berço do pensamento político atual baseado em critérios assentes no humanismo, na democracia e no progressismo social.
Interessantes figuras do pensamento social, filosófico e político deram à humanidade teorias que a dia de hoje são os modelos e as praxes políticas do mundo na atualidade.
Ora, o pensamento nasce da inteligência e da capacidade para abstrair e imaginar cenários sócio-políticos novos e melhores. Como pensamento humano que é, ninguém escapou nunca dele, nem sequer aqueles que sofreram perseguição e repressão dentro dessa Monarquia Católica ou Hispânica, que durante esses séculos obscuros praticaram e impuseram os autos de fé, as abjurações e as brutais torturas que faziam parte das suas praticas políticas e religiosas e que estavam tão afastadas do ideal cristão quanto próximas do verdadeiro averno de Satã e Belzebu. Esse livre pensamento gerou perseguição gerida por uma inquisição e um poder monárquicos que nunca permitiram o cultivo da ciência ou da filosofia como matérias vistas positivamente para o desenvolvimento, o crescimento, a prosperidade e o progresso da sociedade. “Que inventen ellos” diz-se que comentou mais de uma vez Miguel de Unamuno, quem teve o atrevimento de apoiar o golpe franquista de 1936 embora depois de lhe ver os dentes ao lobo da guerra, decidiu acrescentar aquela outra não menos famosa de “vencereis pero no convencereis”.
Absurda e insana coerência hispânica que ainda vive hoje na psicologia de tantos espanhóis, acrescentada cada pouco tempo com os mesmos problemas de sempre, relacionados com a intolerância, o dogmatismo, a intransigência e uma forma de solucionar problemas mais própria e próxima do paleolítico do que da civilização das luzes.
O facto de o pensamento ser algo consubstancial ao ser humano, incluídos os que dentro dessa histórica Monarquia Católica exerceram de dissidentes –mesmo dissidentes da ideia da Espanha–, fez com que interessantes figuras da intelectualidade nascidas em qualquer dos reinos governados pelos Habsburgos ou pelos Bourbons, deram, apesar de tudo, o seu fruto à humanidade operando de diversos ramos da epistemologia científica ou humanista, quer da ciência, quer da filosofia, quer da política… Alguns, mesmo, personagens vinculados à Galiza, apesar de estar sumida na mais funda das crises, acontecida desde a chegada de Isabel de Trastamara ao trono da Coroa Castelhana.
Certo é que os galegos chamamos de Séculos Obscuros a essa etapa histórica que vai desde os finais do XV até finais do XVIII, sendo habitual nas escolas ensinarmos aos alunos que não tem havido, nessa época, praticamente nada em relação com a criação artística, literária e mesmo qualquer protagonismo político da Galiza. Assim são os paradigmas oficiais… Mas a realidade não é essa. A Galiza pensava e criava embora como é tradicional no nosso País viesse da mãos dos dissidentes. Como quase sempre.
Neste artigo quereríamos falar de três pessoas fundamentais do ponto de vista da filosofia. Todos três nascidos ou relacionados com a Galiza por vínculos familiares. São eles Francisco Sanches, Gomes Pereira e Bento Espinosa. Os três dissidentes, os três marginados, os três exilados, os três lúcidos pensadores e os três pedras basilares da construção do edifício civilizacional no que nos assentamos a dia de hoje, mas também os três, desonrosamente esquecidos nos livros de filosofia pelos paradigmas convencionais, indicadores da visibilidade ou ocultação das pessoas em função da sua conveniência ou não.
Francisco Sanches foi um médico e filósofo nascido em Tui, terra do seu pai, António Sanches, mas batizado em Braga, terra da sua mãe, Filipa de Souza. O facto de ser filho de pais de origem hebreu fez com que tivessem que viver perseguidos pela inquisição até que decidiram emigrar para França, em cujo Reino se formou e desenvolveu o seu labor de medico e filósofo. Foram as cidades de Bordéus, Mompilher e Tolosa os seus lugares de assento e de trabalho.
Não seria digno de menção se não fosse porque para além de ser professor do conhecido medico aragonês e espanhol –alguns dizem catalão– Miguel Servet, foi junto com outro personagem, também e de origem hebraica-galega, de nome Gomes Pereira, os criadores do método cartesiano, isto é, da filosofia que advoga pela razão e a duvida metódica, bases da Revolução Científica iniciada por Nicolau Copérnico e eles próprios, para alem de Galileu Galilei e Francis Bacon, seguidos mais tarde por Johannes Kepler no século XVII e Isaac Newton no XVIII.
Todos estes créditos, no que diz respeito do cartesianismo, leva-os quem lhe dá o nome ao dito movimento filosófico: o filosofo, físico e matemático francês René Descartes quem no seu Discurso do Método e fazendo ostentação, segundo ele, do senso comum, o senso melhor repartido do mundo, por aquilo de que todo o mundo diz ter o suficiente, usa elementos originais tanto da obra de Francisco Sanches, —nomeadamente a famosa dúvida metódica do seu Quod nihil scitur, quanto de Gomes Pereira, quem rechaçava o critério de autoridade e expunha no seu De inmortalitate anima aquela frase tão reconhecidamente cartesiana que se passou à história como era a de Cogito, ergo sum, mas exprimida segundo versão precursora: Nosco me aliquid noscere: at quidquid noscit, est: ergo ego sum (3).
Isto foi posto à luz pelo teólogo huguenote francês, Pierre-Daniel Huet, quem quase duzentos anos mais tarde, em 1723 no seu livro Censura filosófica cartesiana, qualifica Descartes de autêntico plagiário, ao decalcar as ideias fundamentais dos textos dos livros de Sanches e de Pereira.
Da suposta galeguidade de Gomes Pereira podemos dizer pouco, embora se saiba que o seu pai foi expulso do território da Coroa por Isabel I de Trastamara quando a Rainha Católica expulsou os judeus em 1492. António Pereira, o pai do filosofo, também médico, fugiu para Portugal, como se sabe, por uma declaração do corregedor de Medina do Campo recolhida em 1546, cidade onde retornou convertido ao catolicismo e onde conheceu a Margarida de Medina com quem casou. Nessa cidade castelhana é onde nasceriam os filhos de ambos, entre eles Gomes Pereira. O facto de se chamar Pereira, nome de família galego-português, diz qual a possível origem da sua ascendência.
O facto de fugir para Portugal dá-nos uma importante pista, já que os judeus galegos tiveram como destino de fugida o reino vizinho do sul, por proximidade linguística e porque as suas redes comerciais e familiares estavam em Trás-os-Montes, as Beiras e Lisboa, contrariamente aos judeus castelhanos que emigraram maciçamente para distintos lugares do Mediterrâneo, como o Norte de África, os Balcãs, o Império Otomano e Oriente Médio. Uma vez instalados em Portugal tiveram que emigrar novamente, esta vez para os Países Baixos e Alemanha, obrigados pelo Alvará Real ditado por Manuel I em 1497 e pelo posterior Massacre de Páscoa em Lisboa do ano de 1506. Deveu ser nestas datas que António Pereira deixou Portugal e decidiu emigrar à cidade castelhana de Medina do Campo, uma ver convertido ao cristianismo com o fim de achar uma vida pacifica onde provavelmente não o pudessem conhecer. Provavelmente na Galiza seria mais facilmente reconhecido…
Gomes Pereira, para além de filósofo defensor da razão, do método experimental e médico, foi também inventor e precursor dos estudos de psicologia, seguindo uma metodologia científica e empírica. A sua condição étnica de judeu converso foi um grande obstáculo para o desenvolvimento livre das suas capacidades e para a exposição dos seus conhecimentos num ente político como era a Coroa de Castela, que como dissemos ao principio, usou as suas energias em reprimir toda amostra de inteligência, de originalidade, de génio e de agudeza intelectual.
O terceiro personagem em questão, Baruch, Bento ou Benedito Espinosa, é um filosofo mais conhecido e reconhecido pela historiografia tradicional, talvez porque a sua família já estava assente nos Países Baixos desde havia algum tempo, longe da censura hispânica. Nascido em Amesterdão, já bem entrado o século XVII, era um judeu incluído dentro da comunidade judeu-portuguesa da que acabou sendo rechaçado pela sua ideia de Deus contraria aos preceitos talmúdicos. Para ele, Deus era uma manifestação da Natureza a quem haveria que considerar como autentica divindade, dai o seu panteísmo. Por outro lado, para ele, a Bíblia era um tratado mitológico que não haveria que considerar com qualquer dogmatismo. Foi por isso que foi expulso da comunidade judaica amesterdanesa.
Sabe-se que a sua língua familiar era o português pelo que sempre foi considerado um judeu-português pela maior parte dos estudiosos da sua figura, mas estudos recentes de inteletuais como Olga Gallego, escritora, académica da Real Academia da Historia e diretora do Arquivo Histórico Provincial de Ourense fez um trabalho sobre o filosofo amesterdanês revelando umas origens familiares em Ourense. A sua fonte foi o historiador Bento Fernandes Alonso quem recebeu documentação do Padre Jesuíta Fidel Pita, catedrático em Feldkirch (Tirol), quem em investigação junto com outro colega, também Jesuíta, acharam documentos que falavam da origem ourensana da família de Espinosa, vinculada a uma localidade cujo nome, de difícil leitura, começa por Vid… Há quem identifica com Videferre de Oimbra. Diz-que também a família fugiu para Portugal, e daí para Holanda, onde desenvolveram a sua atividade vital com uma existência mais ou menos serena e sem grandes sobressaltos.
Espinosa foi defensor da liberdade do individuo e da democracia, influenciando nisto aos futuros pensadores do Século das Luzes da França do XVIII e portanto precursor da praxe política nascida da Revolução Francesa. A Royal Society inglesa defensora do método científico, assim como cientistas holandeses da categoria de Christiaan Huygens ou Antony van Leeuwenhoek admiraram e reconheceram a filosofia do autor; também a Teologia Liberal reivindica Espinosa como um dos seus modelos ideológicos a seguir pela sua posta em critica dos textos religiosos,…
Os três pensadores referidos neste artigo foram perseguidos e/ou refugiados políticos cujas famílias fugiram da terra que eles consideravam sua, perseguidos por razões ideológicas e religiosas. Dous dos três tiveram o seu assento nos Países Baixos, território que exerceu um feroz desejo de independência a respeito da Monarquia Católica, intolerante, repressiva, discriminativa, mesmo racista e praticante do fanatismo religioso e político, com atividade violenta contra os dissidentes, perseguindo e reprimindo os que considerava diferentes. A vida desde essa intransigência não trouxe avanço político na existência dos seus súbditos, mas a Holanda pelo facto de recolher os dissidentes de todos os cantos da Europa, comerciantes calvinistas, judeus galegos e portugueses, huguenotes franceses,… gerou um espírito de diversidade, de tolerância e de harmonia que engendrou o que na historiografia é denominado com o nome de Idade de Ouro neerlandesa. Esta foi originada por uma revolução política prévia que é conhecida como Revolta Holandesa ou Guerra dos 80 anos contra o domínio espanhol. Uma vez libertados os Países Baixos, esta liberdade e esta conjuntura de pais que aproveita o valor dos dissidentes que outros não querem, derivou em uma revolução cientifica, cultural e económica que pôs Holanda como uma dos países mais avançados da Europa moderna e a dia de hoje paradigma de democracia, tolerância, bem-estar, solidariedade, harmonia social, prosperidade e cultura. Nada a ver com os que criaram o Santo Ofício ao serviço dos seus monarcas, nem com os que instituíam a sua política pelo temor a um deus castigador imposto pelo medo; esses cujas instituições estiveram sempre tão afastadas das democracias europeias e que teimaram historicamente na privação da liberdade a indivíduos e povos com direito legitimo a ela, e mesmo, merecedores dela.
Comentários:
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Originariamente o livro leva por titulo Unha Nación no mundo. A razón resistente seguindo a normativa ortográfica e morfossintática da RAG. Camilo Nogueira Román, foi deputado no Parlamento Galego entre os anos 1981 e 1993 e posteriormente entre 1997 até 1999. Desde esse ano foi deputado no Parlamento Europeu até 2004 representando à Galiza e utilizando a nossa língua comum nos plenos e no trabalho diário de deputado, reconhecendo que o seu galego era a mesma língua que era oficial no Parlamento de Bruxelas com o nome de Português, seguindo a tradição iniciada por José Pousada desde 1994. Esse livro seu, segue a norma da RAG apesar de ele defender a reintegração das falas galegas no conjunto do português internacional. Aguardamos ver em algum momento algum livro de temática historiográfica, económica ou política, os temas sobre os que ele escreve, redigida seguindo a versão internacional da língua à que ele adere. Terá que nos dar essa satisfação em algum momento…
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Monarquia Católica foi o nome oficial até o século XVIII, do que hoje se denominada Reino da Espanha. A partir do século XVIII e ate o XIX o nome seria o de Monarquia Hispânica.
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Nosco me aliquid noscere: at quidquid noscit, est: ergo ego sum. Traduzido ao nosso falar quotidiano daria algo próximo ao seguinte: Eu sei que algo sei de mim. Destarte, qualquer cousa que se conhece é que é. Portanto, eu sou.
Spinoza ou Espinosa foi expulsado da Sinagoga local. Albacete, filósofo, tratou o caso extensamente.